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Bacurau

Bacurau

Você quer viver ou morrer?

Wallace Andrioli - 23 de agosto de 2019

Apaixonado pelo cinema de John Carpenter, Kleber Mendonça Filho (dessa vez acompanhado, na direção, por Juliano Dornelles) inicia “Bacurau” referenciando abertamente a obra-prima “O Enigma de Outro Mundo” (1982). O plano parte do espaço sideral, atento às estrelas, e se aproxima lentamente da Terra. No filme de Carpenter, ele é rasgado por uma nave espacial, que mergulha no planeta azul. No de Kleber e Juliano, pela canção “Não identificado”, de Caetano Veloso (interpretada por Gal Costa), cujos versos falam de “disco voador” e “objeto não identificado” que brilham no céu de uma cidade do interior.

Não há seres literalmente extraterrestres em “Bacurau”. O disco voador que por vezes sobrevoa o vilarejo pernambucano do título é, na verdade, um drone. Há, no entanto, alienígenas, no sentido lato do termo: um pequeno grupo de forasteiros (americanos comandados por um alemão), que cerca Bacurau para praticar caça esportiva com seus habitantes. Se Kleber e Juliano se afastam de “O Enigma de Outro Mundo” ao descartarem a literalidade de inimigos de outros planetas em sua história, eles retornam à veia carpenteriana nessa opção por colocar seus personagens numa situação de cerco. A referência principal passa a ser “Assalto à 13ª DP” (1976) e a desesperada resistência de um pequeno grupo (formado por um policial negro, um condenado à morte e uma mulher) às investidas de uma violenta gangue – e os diretores citam diretamente o primeiro grande filme de Carpenter na cena do assassinato brutal de uma criança.

Resistência é, aliás, uma ideia-chave em “Bacurau”. Kleber Mendonça Filho recorreu a ela em seu filme anterior, “Aquarius” (2016), ainda que com tonalidades distintas. Como os moradores de Bacurau, Clara (Sonia Braga), a protagonista de “Aquarius”, se vê cercada por forças que ameaçam sua atual existência. A situação, no entanto, é bem menos extrema: o inimigo é uma grande imobiliária que deseja desalojar Clara, mulher de classe média alta, de seu velho apartamento na praia de Boa Viagem, em Recife. A personagem tem meios simbólicos e materiais para travar o embate que julga necessário, recorrendo à lei e a ameaças feitas entre iguais.

“Bacurau”, por sua vez, lida com habitantes de uma pequena comunidade no sertão de Pernambuco, homens e mulheres que se tornam presas numa espécie de safari organizado por estrangeiros que veem no interior brasileiro um espaço selvagem, aberto à liberação de instintos animais recalcados na civilização. A luta de Bacurau é de vida ou morte. Sua forma de resistir é proporcional à brutalidade que lhe é infligida. Kleber, portanto, mantém interesses temáticos e estilísticos, mas promove um deslocamento de seu cinema para outros lugares geográficos, sociais e míticos. O Brasil de “Bacurau”, localizado num inespecífico “daqui a alguns anos”, é o Brasil de hoje, que avança retrocedendo. Como em “Divino Amor” (2019) e nas ficções-científicas de Adirley Queirós, a distopia está cada vez mais no presente.

De volta ao plano que abre “Bacurau”. A câmera que passeia pelo espaço sideral e se aproxima da Terra não segue até a Antártida, como em “O Enigma de Outro Mundo”. Seu destino final é o Brasil, visto de cima. “Eu vou fazer uma canção pra ela, uma canção singela, brasileira”, canta Gal Costa. Kleber e Juliano olham para o regional/nacional. Refratam o estrangeiro predador, apelam a uma quase cosmogonia própria para confundi-lo e derrotá-lo. Invocam tradições de luta contra o poder (os cangaceiros e suas armas), nomes de homens e mulheres que pereceram como adversários do status quo, às vezes diretamente assassinados por ele. João Pedro Teixeira, líder camponês morto em 1962 e cuja trajetória foi narrada em “Cabra Marcado Para Morrer” (1984), Marielle (Franco), Marisa Letícia (Lula da Silva). Num presente/futuro de arbítrio, clamam por um passado (mitificado) de sacrifício, mas também de resistência violenta, impiedosa. Cabeças cortadas. A “canção singela, brasileira” muitas vezes é feita na ponta de um facão.

Curiosamente, os diretores seguem por esse caminho se agarrando ao cinema de gênero, a elementos do western, do horror e da ficção-científica fortemente associados aos filmes americanos. Tal escolha municia “Bacurau” de uma frontalidade fundamental para explicitar as questões de sua narrativa. Esse, aliás, parece ser um movimento contínuo na obra de Kleber Mendonça Filho: a passagem do subentendido ao aberto. Do horror presente nas entrelinhas e nos pesadelos dos personagens de “O Som ao Redor” (2012) à luta intestina da classe média alta em “Aquarius”, e agora ao confronto extremo, pela vida, entre pequenos e grandes, nacionais e estrangeiros. O cenário vai se clareando conforme a barbárie se anuncia. Os inimigos são cada vez mais visíveis. Trata-se de um cinema que, mais uma vez, consegue acompanhar, com os devidos filtros ficcionais, os rumos recentes do país e que não abre mão de se posicionar.

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