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Brooklyn: Sem Pai Nem Mãe

Brooklyn: Sem Pai Nem Mãe

Nostalgia noir, cinema sobre cinema

Matheus Fiore - 5 de dezembro de 2019

Dirigido, produzido, escrito e protagonizado por Edward Norton, “Brooklyn: Sem Pai Nem Mãe” faz uma mudança interessante em relação à obra literária de Jonathan Lethem, que inspirou o filme. Se, no livro, a trama que envolve a investigação da morte do detetive Frank Minna por um de seus pupilos, Lionel Essrog, é ambientada nos anos 80, no longa-metragem, Norton transporta a narrativa para os anos 50. A mudança não é acidental. Norton resgata toda a aura clássica dos filmes noir, levando sua história para o momento final do importante movimento cinematográfico.

“Brooklyn: Sem Pai Nem Mãe”, porém, não olha para o noir com um olhar moderno ou revisionista. Na verdade, o sentimento evocado por toda a construção formal do filme é o de nostalgia. Norton parece se deliciar com cada nota de saxofone composta pela trilha, por cada fumaça saindo dos bueiros das ruas do Brooklyn, por cada nova pista da investigação da morte de Frank Minna (Bruce Willis). Por trás dessa viagem nostálgica, há pouco, mas o pouco que há é bem feito. Uma trama bem típica, recheada de subtramas políticas, questões morais, paixões e fracassos. Quando, após a morte de seu mestre, Lionel passa a utilizar seu chapéu, parece ser mais do que um aluno seguindo os passos do professor; parece também Norton homenageando um cinema marcado por mestres como Billy Wilder e Orson Welles.

Lionel Essrog parece ser o personagem mais deslocado em “Brooklyn: Sem Pai Nem Mãe”, mas não digo isso de forma pejorativa. O protagonista é portador da Síndrome de Tourette, o que fez com que, ao longo da vida, ele fosse mais excluído do que o normal. Em vez de explorar a condição do protagonista para apelar ao overacting ou para fragilizar e vitimizar seu personagem, porém, Norton aproveita a síndrome de outro jeito. Essrog, por viver em um mundo tão ríspido, acabou por se tornar uma pessoa emocionalmente isolada, com poucos amigos e amores.

Em virtude disso, uma simples dança em um clube de jazz, por exemplo, ganha um peso emocional muito maior. Lionel é, ao mesmo tempo, um personagem tímido descobrindo uma nova experiência, e o autor por trás deste personagem utilizando essa persona para fazer uma viagem nostálgica a um cinema por ele muito bem quisto. Quando Lionel afirma não conseguir controlar seus espasmos ao ouvir as notas de um talentoso trompetista, é quase como se Norton confessasse ser incapaz de realizar “Brooklyn: Sem Pai Nem Mãe” meramente para homenagear o noir clássico.

O interessante é que todo o elenco reage de maneira similar ao mundo construído em “Brooklyn: Sem Pai Nem Mãe”. Alec Baldwin, por exemplo, nitidamente se diverte no papel do vilão Moses Randolph, apelando para as expressões faciais mais caricatas em alguns momentos. O mesmo vale para os outros, como o canastrão Tony (Bobby Cannavale), que é uma das peças fundamentais para entendermos a moralidade por trás de toda a narrativa – o personagem, ao mesmo tempo, age em prol do protagonista, mas possui seus próprios interesses, o que solidifica a dubiedade moral tão típica do noir, como visto em filmes como o clássico “A Marca da Maldade”, de Welles.

Em muitos momentos, durante a investigação, o protagonista se porta não só como um narrador, mas como um verdadeiro observador desses personagens. O olhar do personagem e do diretor fundem-se, de forma que “Brooklyn: Sem Pai Nem Mãe” soa, a quase todo momento, como um filme metalinguístico, que comenta e faz reverência ao próprio gênero que exerce. Ironicamente, o próprio protagonista precisa, ao longo do filme, assumir uma segunda identidade para que seu trabalho como detetive não seja prejudicado. Outra ironia é o fato de Lionel a todo momento fotografar suspeitos para sua investigação, o que fortalece mais ainda a tese do voyeurismo na relação de Norton com o gênero.

Conforme a trama desabrocha, o mistério da morte de Minna se desdobra para problemas que colocam Lionel em choque contra o sistema político. É interessante observar, portanto, como o roteiro cria uma conexão entre o vilão Moses e as pontes da cidade, que fazem parte de seus projetos arquitetônicos. O fato de haver, em inúmeros momentos, partes das pontes da cidade nas janelas ou no fundo do quadro, reitera essa onipresença do poder de Moses em Nova York, uma cidade que parece construída por e para pessoas como ele. Trabalhando em cima do estabelecimento desse sistema corrupto como algo inexorável e subjugador, Norton consegue tirar proveito dessa situação por nunca trazer personagens “do bem” que tenham alguma esperança de desconstruir completamente esse cenário. Na verdade, em “Brooklyn”, todos parecem cientes da complexidade da sociedade onde vivem, o que afasta o filme de binarismos.

Edward Norton consegue alinhar bem seus objetivos como cinéfilo com a conclusão de seu protagonista. Assim como, para Lionel, a única forma de encontrar algum descanso seja no escapismo, abandonando a cidade grande e encontrando um lugar de paz, próximo ao mar, para o próprio Norton, o escapismo pela ficção parece ser sua forma de experimentar um cinema que há muito viveu seu auge, que existiu antes mesmo de o artista nascer. E assim aliviam-se as dores de ambos, do personagem que o mundo não compreende ou respeita, e a do artista que não pode voltar no tempo, a não ser pelo próprio cinema.

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