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Cabeça de Nêgo

Cabeça de Nêgo

Um estudo da escalada do racismo e da destruição da sensação de proteção do ambiente escolar

Matheus Fiore - 1 de fevereiro de 2020

Filmes com uma narrativa que escala em seus acontecimentos, partindo do ordinário ao absurdo, não são exatamente uma novidade mas, se bem feitos, podem ter um efeito arrebatador em suas conclusões. O primeiro exemplo que me vem à mente é “Ensaio de Orquestra” (1978), filme de Fellini que acompanha a gradual revolta de uma orquestra diante de problemas hierárquicos que surgem ao longo de um ensaio. Outro bom exemplo é “Ruth em Questão” (1994), longa de estréia de Alexander Payne, também segue estrutura semelhante, acompanhando a jornada de uma jovem grávida (Laura Dern) que não consegue fazer suas próprias escolhas, já que o mundo inteiro quer interferir em sua gravidez.

Apesar de ter, em sua forma, uma estrutura em espiral de caos semelhante a dos filmes citados, “Cabeça de Nêgo”, de Déo Cardoso, busca a referência de conteúdo em outro modelo de cinema: Spike Lee. Tanto por sua visão que parte sempre de questões raciais, quanto pelo uso de referências ao movimento negro americano como definidor do caráter de personagens, “Cabeça de Nêgo” acaba por conseguir trazer para o cinema brasileiro, essa visão tão típica do cinema de Lee, mas em um contexto essencialmente nacional.

O filme possui uma trama bem simples: um aluno de um colégio público sofre racismo, revida com um empurrão e é expulso de sala. O problema é que Saulo, o aluno, se recusa a sair do espaço. A questão escala, e a recusa de Saulo logo se torna um movimento de ocupação da escola, que envolve tanto os demais alunos, quanto imprensa e figuras políticas. É criado um verdadeiro espetáculo ao redor do problema, bem como Payne faz em “Ruth em Questão”. Sai a temática feminista, entra a temática racial. Desenvolvendo essa ideia, Déo Cardoso faz um filme que parte sempre da escalada, para mostrar como pequenos gestos racistas e a conivência não só impulsionam a escalada de violência, como perpetuam a estrutura racista da sociedade brasileira – que tem justamente no racismo o maior marco negativo de sua história.

Cardoso faz um filme um tanto quanto didático. Não só pela constante explicação e – justa – idolatria aos Panteras Negras, mas até pelo estudo do papel dos educadores, que vez ou outra refletem sobre o próprio ofício durante as reuniões escolares retratadas. Esse método de construção que consiste, basicamente, em o diretor nos pegar pela mão e guiar pelos caminhos pelos quais quer que nós passemos, acaba sendo escolar demais. O didatismo também se faz presente em todas as relações conflituosas do sistema. Não basta, por exemplo, um político desaparecer com a verba destinada a manutenção de uma escola, ele precisa falar sobre isso em um jantar, é preciso que os alunos protestem o chamando de corrupto e que uma emissora de televisão claramente seja compensada por sempre defender sua atuação política.

Mas, talvez, seja justamente essa a proposta de Cardoso: criar uma obra que dialogue com o grande público, principalmente os jovens – e talvez até por isso, “Cabeça de Nêgo seja o filme da Mostra Aurora de Tiradentes com linguagem mais americanizada – com uma linguagem mais frontal e profissional. O que eleva bastante a narrativa de “Cabeça de Nêgo” é que o filme, por apresentar eventos de violência policial, racismo e desrespeito aos estudantes tão críveis e típicos do Brasil de hoje, já possui uma forte ligação de sua ficção com a realidade, mas Cardoso faz questão de nos remover do filme por alguns segundos e projetar cenas reais que são análogas aos acontecimentos do filme.

Com essa brincadeira na qual o universo do filme se mistura com a realidade, o impacto do clímax caótico de “Cabeça de Nêgo” existe justamente por ser tão real, tão palpável. É como se, até pelo fato de assistirmos a um filme que é quase inteiramente ambientado em uma escola, estivéssemos em uma aula teórica e, ao fim da aula, pisássemos na rua e constatássemos que o mundo externo é exatamente aquilo que ali aprendemos. Se as escolas são, por proposta, um lugar de segurança e crescimento para os jovens – como Cardoso evidencia na primeira cena do filme, quando três personagens são salvos de uma ameaça pelo portão do colégio –, no Brasil atual, a precariedade e aparelhamento dessas instituições faz com que, nem mesmo lá, os estudantes tenham a proteção necessária.


Texto originalmente publicado como parte da cobertura do Plano Aberto para a 23ª Mostra de Cinema de Tiradentes. Para conferir toda a nossa cobertura, clique aqui.

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