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Capitã Marvel

Capitã Marvel

Divertido e maduro, mas levemente pasteurizado

Matheus Fiore - 5 de março de 2019

Já não é novidade para ninguém que a Marvel tem se repetido em seus filmes. Fórmulas bem básicas são reaproveitadas em praticamente todos os projetos da gigantesca saga iniciada em 2008, com “Homem de Ferro”. Alguns filmes, porém, conseguem fazer algo diferente, mesmo que presos a essa fórmula. O ótimo “Vingadores: Guerra Infinita“, por exemplo, utilizou a mudança de perspectiva para contar sua história sem sobrecarregar nenhum herói com o protagonismo: o olhar do público, nessa obra, é guiado justamente pelo vilão, Thanos, escolha que permite que o longa tenha uma abordagem mais sombria. Já “Pantera Negra” segue um caminho diferente: a obra não tenta fugir da fórmula, mas se destaca pela forma como a utiliza para, através de uma roupagem focada na representatividade, falar sobre questões raciais. “Capitã Marvel”, novo filme do estúdio, está mais próximo do segundo exemplo.

Com direção da dupla Anna Boden e Ryan Fleck, que já trabalha em parceria desde “Sugar” (2008), o primeiro filme Marvel protagonizado e co-dirigido por mulheres aproveita as questões de gênero que transpassam o roteiro e, partindo delas, chega a discussões políticas interessantes. “Capitã” é, porém, um filme que aborda seus temas do “jeito Marvel”, ou seja, lavando o roteiro ao ponto de os temas não serem ramificações temáticas, mas pequenos sinais de algo que está lá apenas na superfície e nunca é aprofundado. Há, como parece ser inevitável nas obras do estúdio, uma pasteurização, um limite pré-estabelecido que impede que os assuntos periféricos sejam desenvolvidos e se tornem algo um pouco mais complexo, que exija mais do que uma ou duas frases para serem compreendidos.

Há toda uma jornada de emancipação em torno da protagonista Carol Denvers. Sua busca por poder passa, além da conquista de seu próprio espaço, pelo reconhecimento de sua trajetória, pelo triunfo em sua batalha contra as limitações da própria sociedade – e, portanto, contra o inconsciente coletivo, que aqui existe literalmente como um personagem. Todas essas ideias estão lá de forma sucinta, e servem de base não para fazer da obra um manifesto feminista, mas sim uma jornada de auto-empoderamento que permitirá a Denvers lutar por coisas maiores. Em outras palavras: a Capitã Marvel precisa conquistar a si mesma para, então, poder representar os demais.

A construção visual que já é típica em obras do estúdio novamente marca presença. Assim como em “Pantera Negra” – os filmes têm mais em comum do que pode parecer –, o mundo da protagonista é construído com um visual que mistura futurismo e magnificência, o primeiro pela modernidade e complexidade dos edifícios do mundo Kree, e o segundo pela escolha de planos que engrandecem a paisagem e pela luz dourada que banha esse mundo. Infelizmente, os problemas também são os mesmos: cenas de ação que se aproveitam de ângulos ruins e movimentação exagerada da câmera para esconder a ausência de qualquer coreografia e plasticidade. É um filme em que a protagonista, especialista em combate, tem pouco espaço para fazer algo além de disparar rajadas de energia.

Além das cenas de ação, decepciona também a ambientação dos anos 90, que parece apenas pegar carona na onda saudosista de “Stranger Things”, que fez sucesso reverenciando a década de 80. Além da oportunidade de conhecermos Nick Fury e o Agente Coulson antes dos eventos da saga “Vingadores”, o fato de acompanharmos uma obra Marvel ambientada nos anos 90 serve apenas para que toneladas de referências e piadinhas dos anos 90 sejam despejadas no espectador. E geralmente sem a mínima função se não criar humor.

Quanto aos temas do filme, a impressão que fica é a de que, mesmo que eles sejam interessantes e até bem apresentados, nem todos os personagens e elementos do longa são bem incluídos nas discussões. De positivo, há a forma como a obra encara a transformação da protagonista: “Capitã Marvel” parece sugerir que uma transformação na sociedade passa, primeiramente, por uma transformação interna no indivíduo – a protagonista, por exemplo, só é capaz de efetivamente lutar pela causa política que abraça quando de fato está emancipada do sistema que a controla.

Essa jornada de Denvers para alcançar uma autoconscientização para, posteriormente, lutar por terceiros, é bem amarrada pelo roteiro, e consegue reunir quase todas as subtramas do filme sem deixar pontas soltas. É de se elogiar, portanto, que o filme consiga transformar em um elemento basilar a emancipação pessoal de sua protagonista, permitindo que o tema seja parte da espinha dorsal da trama justamente por ser o que define o rumo da heroína.

De negativo, porém, há a total desconexão de alguns personagens com os temas políticos e sociais da obra: um personagem, por exemplo, que é central para as discussões do filme, nunca assume seu lugar no debate, fazendo com que fique vaga a cadeira do contraponto a ser enfrentado e desconstruído. Essa ausência de um posicionamento do personagem acaba por remover boa parte do drama do filme, já que, em certo ponto, os vilões parecem agir apenas para que haja cenas de ação, e não para alcançar um objetivo.

“Capitã Marvel”, em certo ponto, parece não transmitir mais a sensação de perigo iminente, parece manter seus personagens em uma zona confortável, deixando-nos sem a dúvida de se haverá um final feliz. Seria interessante, aqui, não só um melhor desenvolvimento da figura que deveria antagonizar a história, mas também aproveitar o momento para melhor desenvolver a personalidade de Carol Denvers, que acaba sendo uma figura um tanto quanto rasa, o que se reflete bastante na atuação monótona de Brie Larson.

Claro que, se a Marvel ao menos permitisse que os diretores e roteiristas tivessem mais liberdade para desenvolver os temas de seu filme, “Capitã Marvel” poderia ser um belo exemplar de filme de heróis com viés, mas até que, dentro do possível, o resultado é positivo. A obra de Boden e Fleck é capaz de introduzir um novo universo dentro do já gigantesco Universo Cinematográfico da Marvel, sem que com isso deixe de trabalhar suas próprias ideias. É interessantíssimo assistir a uma obra que sabe se posicionar politicamente sem deixar de lado seu apelo popular, por mais que isso só seja possível por meio de um processo de pasteurização que faça o filme parecer ser oriundo de uma linha de produção.

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