Ajude este site a continuar gerando conteúdo de qualidade. Desative o AdBlock

Copacabana Madureira

Copacabana Madureira

Da iconografia bolsonarista do Brasil atual à crítica aos problemas de recorte da própria esquerda

Matheus Fiore - 27 de janeiro de 2020

O cinema brasileiro atual demonstra enorme interesse em falar sobre a atual fase política do país. Claro, não é exatamente uma novidade, pois é uma característica histórica da sétima arte brasileira o interesse pelo político. Na última década, porém, as diversas reviravoltas do mundo político fizeram com que esse interesse se intensificasse.

Se por um lado, isso resulta em uma interessante mudança de abordagem de cineastas como Kleber Mendonça Filho, que partiu da sutileza de “O Som ao Redor” para o retrato pessimista e direto de “Bacurau”, por outro, há também obras que acabam não alcançando o mesmo sucesso – cinematograficamente –, mesmo que recheadas de boas pretensões. É o caso, por exemplo, de “Divino Amor”, que fala sobre o domínio evangélico em uma distopia sobre o Brasil que está se construindo, mas acaba escravo de uma estrutura de esquetes que impede seu aprofundamento temático.

Leonardo Martinelli, diretor de “Copacabana Madureira”, já demonstrou interesse em trazer um olhar diferente para essa nova fase política do Brasil no ótimo “Lembra”, filme que emula interações por redes sociais para retratar a ascensão do conservadorismo e do autoritarismo no país. Em seu novo filme, Martinelli acompanha as recentes mudanças do país, e em vez de criar um drama como em “Lembra”, parte da comédia satírica para chegar, depois, à tragédia.

O filme é feito com montagens de imagens de arquivos e edições feitas pelos próprios realizadores. Martinelli demonstra enorme interesse pelo estudo da iconografia que definiu a eleição de 2018. A infame “mamadeira de piroca”, por exemplo, é apresentada inicialmente como piada, mas logo se torna uma espécie de ícone a ser idolatrado. “Copacabana Madureira”, com isso, transforma em mitologia acontecimentos e personagens marcantes do período atual da nossa política.

O interessante, porém, é que apesar de um início engraçado e despojado, “Copacabana” aos poucos ganha uma acidez importante, para que não seja simplesmente um filme “espertinho”. Se a direita das fake news é feita de piada, a parte elitizada esquerda que vê o mundo como meme e abraça causas mais por aceitação social e fortalecimento da própria imagem do que por ideologia e princípios, também é atacada. Mais interessante ainda é quando percebemos que, mesmo que partindo do humor, o filme percebe e abraça o tom trágico do nosso contexto social.

Quando a fake news sobre o PT querer por o rosto de Pabllo Vittar nas notas de real se torna uma piada, a trilha sonora sugere tensão, apreensão. É como se, mesmo sabendo que o público irá rir da situação, Leonardo quisesse também mostrar como, por trás de algo bobo e pueril, há uma construção de pensamento perigosa e de fácil absorção. Os momentos seguintes, então, são a cereja do bolo. De filme-piada, “Copacabana Madureira” vira um filme-denúncia preocupado em manter a memória para aqueles que são mais afetados pelo momento atual do Brasil. A lembrança do crime no qual cinco jovens negros foram assassinados pela polícia com mais de cem tiros, por exemplo, é projetada juntamente às falas do presidente Bolsonaro que enaltecem a violência e a polícia.

“Copacabana Madureira” consegue alinhar uma linguagem moderna e ainda bastante experimental do cinema atual com um discurso que se disfarça de humor despretensioso para tecer comentários importantes, tanto na questão da valorização da memória, quanto pelo fato de o filme saber apontar onde a própria esquerda parece estar falhando. “Copacabana Madureira” como o nome sugere, parte de um lugar de elite, que tem um olhar menos preocupado com a situação atual – e daí o grande acerto de abrir sua obra com humor –, para chegar ao drama das principais vítimas do Brasil de 2020, que são as pessoas periféricas e minorias.

É uma obra que funciona tanto como livramento emocional para nossos demônios políticos, quanto como autocrítica para uma parte da sociedade tão preocupada com imagens e memes, enquanto a realidade é brutal com quem não está na zona de privilégios. O expurgo funciona quase como um preparo para o choque da violência no Brasil. “Copacabana Madureira” nos entretém com o deboche e conquista nossa atenção, apenas para que possamos, posteriormente, receber de forma mais impactante o choque de realidade proposto. Enquanto muitos riem das fake news absurdas, o outro lado da disputa de narrativas políticas se fortalece justamente pelo uso das fake news. Em uma cidade e um país de tantos contrastes, um filme que consegue expor esses contrastes em apenas dezoito minutos e com uma linguagem bastante modernizada, que dialoga principalmente com os millennials, mas ainda é acessível para as outras gerações, é, no mínimo, notável.


Texto originalmente publicado como parte da cobertura do Plano Aberto para a 23ª Mostra de Cinema de Tiradentes. Para conferir toda a nossa cobertura, clique aqui.

Topo ▲