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Sangue do Meu Sangue

Sangue do Meu Sangue

Gustavo Pereira - 1 de dezembro de 2016

Sempre é instigante assistir a um filme realizado por um diretor que ofereça mais do que o óbvio dos enlatados hollywoodianos. Marco Bellocchio (“Bom dia, noite” e “Enrico IV”) reúne tradicionalismo e inovação em seu mais recente longa, resultando num trabalho, se não memorável, no mínimo ousado.

Tradicionalismo ao remontar fidedignamente a Bobbio do século XVII, concentrando a maior parte da primeira parte deste filme no convento de Santa Chiara, uma realidade praticamente paralela ao mundo exterior brilhantemente representada pela sequência de abertura, quando o protagonista chega ao convento e a porta aberta revela uma incidência alegre de luz, cessada imediatamente ao fechar da porta. A madre cega caminhando por um belo jardim, a oposição em relação às puras noviças vestidas de branco. Algo de muito errado acontece neste convento.

O que motiva a chegada de Federico (Pier Giorgio Bellocchio) é a morte de seu irmão gêmeo Fabrizio, padre do convento. Há evidências de suicídio, o que impossibilita um enterro cristão. A única maneira de impedir que seu irmão seja condenado ao Inferno é conseguir a confissão de Benedetta (Lidiya Liberman), irmã da congregação que teria feito um pacto com o Diabo para enfeitiçar o padre e, com isso, tentá-lo a cometer atos luxuriosos com ela.

Em resumo, a Igreja precisa livrar a cara da instituição demonizando uma relação de amor e culpando uma mulher. Não é uma história original (O Crime do Padre Amaro e O Nome da Rosa vieram à minha memória durante a exibição), mas não é uma invenção de Bellocchio. Alguns têm medo de filmes de terror, eu tenho medo destas ficções-quase-documentários com a Igreja tendo força política. O “julgamento” de Benedetta é armado, absurdo e cruel. Conforme a irmã vai se mantendo resoluta em alegar sua inocência, os “métodos” pioram, com o único objetivo de arrancar uma confissão forçada que exima a Igreja da “vergonha” de ter um padre em “pecado”. Federico assiste a tudo passivamente, pois ao mesmo tempo que considera injusta a condenação do irmão, se sente confuso em relação aos sentimentos que Benedetta desperta nele. O uso constante de câmeras nas costas e de closes no rosto de Federico nos mostram a sua perspectiva de quase estupefação diante do que vê.

Esta primeira metade reúne beleza e inocência, principalmente nas irmãs Maria (Alba Rohrwacher) e Marta Perletti (Federica Fracassi), governantas da casa de Fabrizio, católicas fervorosas e ignorantes nas questões do amor e do sexo. A chegada de Federico desperta sentimentos até então desconhecidos pelas duas. O próprio Federico se perde em divagações sobre quem é e pelo que está lutando. Seria seu irmão merecedor de tamanho castigo como a eternidade no Inferno? Essa desconexão entre real e ideal é ilustrada por uma bela versão de Nothing Else Matters, do Metallica, interpretada pelo coro belga de mulheres do Scala & Kolacny Brothers.

Quando a questão de Benedetta se resolve, o diretor Bellocchio inova ao começar a segunda parte de seu filme com uma trama completamente diferente, transformando o convento num personagem de ligação entre as duas. Agora na Bobbio do nosso tempo, conhecemos o Conde Basta (Roberto Herlitzka), um vampiro que comanda uma organização secreta nos moldes da Maçonaria e vive em Santa Chiara, hipnotizado pelo lugar onde ocorreu o calvário de Benedetta. Não apenas a história, mas o gênero do filme muda, indo para uma comédia. Sem dúvida, há conteúdo aqui para um filme independente, mas Bellocchio trata a dinâmica entre os personagens apenas superficialmente. Aqui, há espaço para críticas à modernidade, uso excessivo de redes sociais, especulação financeira etc. “Sangue” é a forma que Bellocchio encontrou para criticar as prioridades sociais ao longo de três séculos.

Gosto da ousadia. Mas é inegável que a transição entre histórias e estilos enfraquece o resultado final. A condução dos personagens se perde, e não há empatia pelo núcleo da segunda parte. Atores fazendo dois papéis acaba mais confundindo do que enriquecendo. O final, apesar de esteticamente belo, com um coral crescente que amarra as duas metades, não tem o resultado esperado porque não nos importamos realmente com o Conde Basta.

Bellocchio tentou acertar o ângulo superior do goleiro e a bola passou rente à trave. Bela finalização. Pena que o jogo estava 1×0 contra.

 

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