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Depois Daquela Montanha

Depois Daquela Montanha

Matheus Fiore - 2 de novembro de 2017

Após o cancelamento de seus vôos devido a uma tempestade, o frio cirurgião Ben (Idris Elba) e a emotiva jornalista Alex (Kate Winslet) contratam Walter (Beau Bridges), um piloto local que aceita viajar, apesar do mau tempo, para levar a dupla ao seu destino. No meio do caminho, porém, Walter tem um derrame e a aeronave colapsa no meio das montanhas. Sozinhos, feridos e acompanhados pelo cão do falecido piloto, Ben e Alex precisam sobreviver e achar o rumo de volta para a civilização. Como as adjetivações dadas aos personagens podem sugerir, a trama ensaia uma análise da colisão do pensamento racional contra o pensamento passional, mas, ao fim da projeção, temos mesmo é um filme indeciso: não sabe se quer ser um drama de sobrevivência ou um romance. Na dúvida, é os dois. Na prática, fracassa nos dois.

Depois Daquela Montanha traz dois blocos distintos. O primeiro é o drama de sobrevivência: Ben é o primeiro a acordar do acidente e, enquanto precisa encontrar um jeito de se manter vivo e procurar ajuda, precisa cuidar de Alex, que se feriu gravemente na queda – sim, o clichê do homem salvador resgatando a mulher indefesa vem no pacote. O segundo é o romance proveniente da atração dos opostos: com pensamentos praticamente antagônicos (enquanto Ben sempre busca ser racional e manter-se seguro, Alex é passional e prefere arriscar sua vida a fim de fugir das montanhas). Pra quem já viu meia dúzia de romances, a conclusão de que ambos terminarão se apaixonando é óbvia. Com direito à cenas que trazem a dupla sendo confundida com um casal e reagindo de maneira envergonhada, truque recorrente do gênero para inserir tensão amorosa ou sexual entre dois personagens.

Idris Elba e Kate Winslet: não falta talento, mas falta roteiro.

Idris Elba e Kate Winslet: não falta talento, mas falta roteiro.

O primeiro bloco é um desastre quase completo. Não há nenhuma urgência ao retratar a situação. Todas as situações nas quais os personagens são expostos são lidadas de forma superficial, como se fossem um passeio no parque – sendo que a dupla está prestes a morrer congelada. Depois Daquela Montanha só ancora sua urgência na passagem de tempo, que é construída de maneira risível pela montagem: o uso muitos cortes entre as atividades dos personagens sugerem uma distância temporal entre eles, mas não há uma variação de iluminação suficiente para que compreendamos as passagens de dia e noite. Com isso, temos a sensação de que o longa se passa em alguns dias até que, para o espanto do público, Ben afirma que ele e Alex estão perdidos há semanas. Não só o tempo passa rápido, como não há uma mudança na cadência de cortes nos momentos mais intensos, o que torna todos os segmentos uniformes em peso. A única vez que a montagem tenta construir um clímax é em uma cena na qual Ben tenta caçar um coelho e fracassa.

A preocupação dos personagens só surge de elementos externos à situação, como o casamento de Alex ou a problemática relação de Ben com sua esposa. Com isso, não há possibilidade de construir alguma tensão ao redor do isolamento dos protagonistas, que parecem mais preocupados em comer bolas de neve do que em caçar. Até nesses momentos, porém, as emoções de Alex e Ben são sucintas. O tom que permeia a dupla enfrentando o desastre é sempre o humor. Com isso, todo o bloco inicial mais parece uma introdução para o bloco final, que é quando a narrativa ganha contornos amorosos.Ben, Alex e o cachorro de Walter descansam diante de uma fogueira.

Elemento essencial numa trama de personagens isolados nas montanhas, o frio também pouco importa na obra, a não ser para justificar os corpos trocando calor – que “romântico”, não? As condições adversas são sempre superadas pelo super-médico-MacGayver, que constrói abrigos e encontra suprimentos entre um corte e outro, sem nenhuma dificuldade. Pela facilidade com que os personagens se viram, tudo em Depois Daquela Montanha soa plastificado. Quando o ambiente não é hostil e os recursos caem do céu como mágica, é difícil haver alguma tensão numa trama de sobrevivência.

Quando a obra se transforma em um romance, fica clara a intenção dos realizadores. Depois Daquela Montanha quer mesmo é ser uma história sobre um amor improvável oriundo de uma situação extraordinária. E quando tenta ser romance, até que o longa tem méritos. O figurino, por exemplo, é peça importante para indicar o sentimento de Ben por Alex, já que nas cenas onde o personagem mais expressa apreço pela jornalista, ele está trajando seu casaco vermelho. Até isso, porém, é sabotado por um roteiro insosso, que parece apenas protelar até conduzir os personagens a uma cena apaixonada.

Ben (Elba), o clássico herói, guiando Alex (Winslet), a mocinha infedesa.

Ben (Elba), o clássico herói, guiando Alex (Winslet), a mocinha infedesa.

Se pelo menos a facilidade das situações nas quais o médico e a jornalista são inseridos fossem contornadas por um melhor desenvolvimento de personagens, até que a obra poderia ter algum diferencial. Não há, porém, qualquer sinal de que o roteiro almeja construir alguma coisa com seus personagens. Enquanto Ben é o clássico “herói” traumatizado que vê em Alex sua chance de recomeçar, Alex é simplesmente uma escada para a recuperação do personagem. A noiva vivida por Kate Winslet não se mostra uma “cara metade” do cirurgião, mas uma ferramenta para que Ben exorcize seus demônios e siga em frente. As atuações apenas refletem a superficialidade da obra, valendo destacar a canastrice de Idris Elba, que sabe o tamanho da despretensão do script que tem em mãos e, por isso, se leva menos a sério a cada nova cena projetada.

Depois Daquela Montanha poderia ser somente um romance simplório, mas a necessidade de inserir dois filmes em um faz com que o romance não tenha graça, já que os personagens não são desenvolvidos e a conclusão do arco não é mistério, e o drama fracasse, já que não há sensação de urgência ou risco de vida para os protagonistas. Ao término da sessão, a única certeza é que alegorias de “cérebro” e “coração” para comparações entre racionalidade e passionalidade já estão bem ultrapassadas. Depois Daquela Montanha já nasce datado. É um Super Cine de 2003, feito em 2017.

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