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Domino

Domino

Terrorista-cineasta

Wallace Andrioli - 24 de outubro de 2019

Quando o segundo avião sequestrado na manhã de 11 de setembro de 2001 se chocou contra a torre sul do World Trade Center, saltou aos olhos, para além da dimensão trágica gigantesca do ocorrido, a minuciosa condução da cena do atentado por seus autores. Como verdadeiros metteurs en scène, os terroristas da Al-Qaeda direcionaram os olhares do mundo para sua ação, controlando a duração da cena e o exato momento do aparecimento no quadro da aeronave, que, enfim, revelava o que de fato acontecia: um ataque, e não um acidente como especulado inicialmente. Desde então, o terrorismo internacional aperfeiçoou sua relação com a câmera. Os registros visuais de execuções de prisioneiros, por exemplo, passaram da rusticidade dos vídeos da própria Al-Qaeda à estetização da violência do Estado Islâmico, com suas produções muitíssimo bem acabadas.

Em “Domino”, Brian De Palma reflete sobre esse estado das coisas e aprofunda a analogia entre terroristas e cineastas. A narrativa policial protagonizada por Christian (Nikolaj Coster-Waldau), Lars (Soren Malling) e, posteriormente, Alex (Carice van Houten) é logo invadida e transformada num thriller de espionagem em que terroristas estabelecidos na Europa planejam ataques cada vez mais espetaculares. Nessa nova configuração, ganham destaque as ações de Salah Al Din (Mohammed Azaay), pensadas como snuff movies propagandísticos, direcionados a milhões de espectadores na internet. No primeiro atentado executado em “Domino”, uma mulher invade o tapete vermelho de um festival de cinema na Holanda e, com duas câmeras acopladas em sua arma, executa os presentes. Esse dispositivo permite a criação, pelos terroristas, de uma split screen típica dos filmes de De Palma, na qual se vê, simultaneamente, o agente da ação e as consequências dela. Já no segundo, localizado no clímax de “Domino”, a explosão de um homem-bomba numa arena de tourada na Espanha deve, segundo os planos de Al Din, ser registrada por um drone que se aproxima lentamente do local, mecanismo cada vez mais corriqueiro no cinema contemporâneo.

É a simbiose entre o olhar das câmeras dos terroristas e o do diretor que torna “Domino” uma experiência estética tão estimulante. Há pouco mais de dez anos, De Palma fez “Guerra Sem Cortes” (2007), filme sobre as atrocidades cometidas por soldados americanos na “guerra ao terror”, todo construído segundo uma lógica do found footage. No afã de parecer mais real, o cinema se apropriava de artefatos usados para registrar momentos cotidianos. Paralelamente, o terrorismo internacional, buscando ampliar o impacto de seus feitos, se aproximava visualmente de uma estética do espetáculo tipicamente cinematográfica. O filósofo Slavoj Žižek comenta, no livro “Bem-vindo ao Deserto do Real” (2003), a semelhança entre as imagens do 11 de setembro, repetidas à exaustão nos noticiários, e cenas de filmes-catástrofe hollywoodianos.

Faz bastante sentido, portanto, que, ao retornar à temática do terrorismo num momento ainda assombrado pelas execuções de prisioneiros pelo Estado Islâmico, geralmente registradas com um profissionalismo repugnante, De Palma o faça embaralhando os olhares, filmando com o esmero característico desses carrascos contemporâneos, e, ao mesmo tempo, tornando essas imagens indubitavelmente suas, parte de um cinema visualmente reconhecível. “Domino” se passa em 2020. Num futuro próximo, a evolução estética dos terroristas os levou a filmar como Brian De Palma.

Há, no entanto, um elemento no filme que revela a percepção que o diretor tem das diferenças (ao mesmo tempo sutis e abissais) entre seu gesto de filmar e o correspondente dos terroristas. Em determinada cena, Christian vê o vídeo de uma execução coletiva do Estado Islâmico. No exato momento em que se iniciam as decapitações, De Palma corta do plano próximo da tela do computador para um geral, em que é possível perceber a reação de repulsa do protagonista. Entre as vítimas está o pai de um personagem importante na trama, Ezra Tarzi (Eriq Ebouaney). As imagens mostradas nessa cena aparentam ser de uma execução real da organização terrorista. Posteriormente, o diretor retorna a esse episódio. A decapitação do velho Tarzi aparece frontalmente. Mas aí se trata, claro, de um vídeo ficcional, encenado para “Domino”. De Palma reconhece o peso que os filmes produzidos pelo Estado Islâmico carregam, o tabu que representam no mundo de hoje. Mostrá-los, em sua totalidade, não é uma opção. Reencená-los, por outro lado, faz parte da prerrogativa de liberdade conferida pela arte. Acabam aqui, na fronteira que separa a destruição da criação, as analogias entre cineastas e terroristas.

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