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Doutor Sono

Doutor Sono

É inglório suceder Stanley Kubrick

Gustavo Pereira - 6 de novembro de 2019

Antes de assistir a “Doutor Sono”, decidi não rever “O Iluminado”. O filme dirigido por Stanley Kubrick e protagonizado por Jack Nicholson em 1980 é tão icônico para o gênero do Terror que seria injusto compará-lo “em pé de igualdade” ao novo trabalho de Mike Flanagan (“A Maldição da Residência Hill“). Adaptar Stephen King, dono de uma das melhores construções de personagem entre os escritores contemporâneos ainda em atividade, é um prato cheio o suficiente para qualquer diretor. Fui ao cinema com a memória de quem já viu o filme inúmeras vezes, mas com o afastamento de quem não o revê há um bom par de anos.

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Entretanto, uma das primeiras cenas de “Doutor Sono” (a segunda, para ser preciso), é a recriação do perturbador passeio de triciclo em que Danny Torrance encontra o quarto 237 do Hotel Overlook. Flanagan não pede: ele praticamente obriga que o espectador compare o seu filme ao de Kubrick. E é inglório suceder Stanley Kubrick, da mesma forma que foi inglório para Edu suceder Pelé e vestir a camisa 10 do Santos em 1975. Os parâmetros são tão fora da realidade que fazem qualquer um parecer pior do que realmente é.

Porque, quando se afasta de “O Iluminado”, “Doutor Sono” é um filme mais do que “honesto”: é bom. A vida adulta de Danny (Ewan McGregor) é interessantíssima, tanto no aspecto empático quanto no dramático. Seu dom (ele é o “iluminado” do título original) é tratado como uma maldição, afogada na bebida. Ao se levar em conta que o próprio Stephen King tem um histórico de alcoolismo e dependência química, dar à grande vítima da primeira obra o mesmo “fundo de poço” do seu algoz – e do autor da história – reforça a ideia recorrente em “Doutor Sono” de que o destino é uma rede pegajosa, difícil de se livrar. De que o passado sempre volta para nos assombrar, por mais que tentemos evitá-lo.

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A força antagonista, a irmandade do Grande Nó, também tem um conceito bem fundamentado para sustentá-la. Estas criaturas, lideradas por Rose “Chapéu” (Rebecca Ferguson) e “Papai Corvo” (Zahn McClarnon), se alimentam do “vapor”, do brilho que torna pessoas como Danny especiais. Matam crianças porque estas são mais “puras” e fáceis de assustar, o que torna o “vapor” mais saboroso (Pennywise adota a mesma tática em “It: A Coisa“, outra obra de King). Por trás de prática tão hedionda, uma motivação compreensível: sem o “vapor”, as criaturas do Grande Nó morrem. “Coma bem, viva bastante”, diz Rose.

O que une os caminhos de Danny e do Grande Nó é a menina Abra (Kyliegh Curran), uma iluminada com quem Danny se comunica por telepatia, dona de um “vapor” tão forte que chama a atenção de Rose. Danny encontrou sua serenidade, mas agora precisa decidir se arriscar ou não para ajudar Abra, como Dick Halloran fizera por ele em 1980. Nas relações humanas, Mike Flanagan constrói uma história sólida, que se sustenta sozinha e faz um elo com o filme original a uma distância segura, respeitosa.

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Quando “Doutor Sono” busca paralelos visuais com “O Iluminado” é que acontece o “Efeito Edu”. Flanagan não é um diretor medíocre. Mas a habilidade de Stanley Kubrick para mise en scènes, ambientes esteticamente assustadores, é incomparável. Quando Danny anda no seu triciclo, o incômodo é provocado pelo virtuosismo da steadycam de Garrett Brown. Quando o triciclo sai de cima de um tapete e passa direto no piso de madeira, a edição de som deixa a diferença entre os volumes insuportável. Ao instruir Danny Lloyd para manter uma velocidade constante na sua pedalada, Kubrick fez com que esses ruídos se tornassem numa música dissonante, a sinfonia macabra do Hotel Overlook.

Sem essas sutilezas, a versão de Flanagan para a cena é quase constrangedora. Quem assistiu ao remake de Gus Van Sant para “Psicose” já entendeu: o filme é uma cópia quadro-a-quadro do clássico de Alfred Hitchcock, mas enquanto o original é uma obra-prima, a “releitura” é um saco de lixo.

O chef e crítico culinário Gordon Ramsay costuma dizer que é um sinal de falta de confiança quando um chef cobre sua comida com molho em excesso. Mike Flanagan demonstrou essa falta de confiança ao não manter seu “Doutor Sono” a uma distância sensata de “O Iluminado”. Talvez achasse que essas referências, como o uso constante do tema de Wendy Carlos, tornariam o seu filme melhor. Em vez disso, acabou escondendo a maioria de suas virtudes e escancarando que ele (justiça seja feita, praticamente qualquer diretor vivo) não tem condições de bater claquete para Stanley Kubrick.

 

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