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Elvis

Elvis

A construção do mito por fragmentos

Nicholas Correa - 1 de agosto de 2022

Elvis, como sugere o título nominal, é sobre um mito. Um indivíduo cheio de complexidade por trás do ícone, do nome facilmente reconhecível e da figura cheia de associações imediatas com a simples alusão. A proposta de um filme biográfico sobre essas prerrogativas, de investigação de celebridades enquanto figuras públicas e privadas, já constitui um caminho conhecido e amplamente balizado dentro do cinema comercial. O interesse nesta biografia de Elvis Presley, dirigida por Baz Luhrmann, se dá principalmente pelo encontro da piromania técnica e visual de seu realizador com a personalidade forte e escandalosa que foi o próprio Presley.

Por um lado, Luhrmann procura sentir e reproduzir a mística em torno da figura do Elvis (interpretado de uma maneira apropriadamente delirante por Austin Butler) e, para isso, faz um trabalho análogo ao da publicidade. É possível perceber esse impulso mistificador desde os primeiros cinco minutos. Nesses primeiros momentos, uma montagem que intercala vários pontos de vista, introduz o personagem narrador do Colonel Tom Parker (Tom Hanks em um raro papel vilanesco) e anuncia de antemão a morte de Presley no final dos anos 1970. Só nestes cinco minutos, Luhrmann lança mão de vários estímulos visuais, computação gráfica, letreiros estilizados, tela dividida e movimentos agressivos de câmera. Não é de se estranhar que a cadência desses primeiros minutos se parece com a de um trailer, como se anunciasse de forma deliberadamente publicitária o que virá a seguir. A edição do filme mantém boa parte dessa cadência rápida e dinâmica. Durante a primeira metade de Elvis é difícil identificar uma cena que não seja intercalada com outra. 

Esse ritmo contribui para que as cenas fiquem em uma dimensão quase abstrata, com as imagens indo e vindo num fluxo que mal dá tempo de contextualizá-las, o que também torna a figura de Elvis (pelo menos em um primeiro momento) um tanto enevoada e fugaz. É curioso como que nesses primeiros minutos, antes de termos uma noção melhor do Presley como artista e como indivíduo, somos apresentados a ele, juntamente de Parker, por meio de uma voz em um toca-discos. Essa cena no início em que o personagem de Hanks toma conhecimento da existência de cantor por meio de uma de suas gravações é emblemática não só por esse tratamento místico do personagem título, mas também porque ela também mostra uma das singularidades mais marcantes do cantor: sua filiação com a música produzida pela comunidade negra. Elvis se destaca como uma possibilidade de empreendimento para Parker, primeiramente, por ele ser um homem branco que produz ritmos associados à cultura afro-americana. E nisso, também somos introduzidos a uma outra vontade de Luhrmann com a figura de Elvis, mostrar a construção do mito.

A trajetória de Presley, por ser narrada por Parker, o agente que notoriamente explorou o cantor, já sugere de antemão uma perspectiva que parte dos bastidores, da parte um pouco mais distante da percepção pública do cantor. Porém, o tratamento de Luhrmann dificulta um pouco esse empreendimento. Por uma boa parte do filme, o frenesi de imagens não permite um olhar que responda a essa perspectiva de bastidores sem torná-la banal. A multiplicidade incessante de efeitos, imagens, cortes e tempos narrativos acaba por conferir um tom estranhamente uniforme. Não se trata de uniformidade de técnicas, mas de uniformidade de reações sensoriais e emocionais. Embora isso acabe, como consequência, borrando a fronteira entre a vida pública e privada do personagem. Só mais tarde no filme, quando a carreira de Presley entra em seus momentos derradeiros e que detalhes reveladores sobre Parker começam a surgir, que as cenas ganham um outro peso, elas não apenas possuem um tom mais sombrio como também possuem um ritmo não tão febril.

Luhrmann não abre mão completamente do hábito de intercalar uma cena com outra, mas depois de um ponto essas operações de montagem já se dão de outra forma. Um bom exemplo disso é a cena em que Elvis canta no International Hotel pela primeira vez. A montagem intercala a performance de Elvis com as negociações de Parker que se dão a poucos metros do palco. Se em grande parte do filme a edição rompe com a unidade espacial e temporal das cenas, a segunda metade já permite que essa intercalagem ocorra em um espaço e um tempo mais delimitado, como se o realizador fosse progressivamente ajustando seu foco. O ponto culminante desse foco é a sequência final com as imagens de arquivo de Elvis. É possível ver nesses registros reais do músico a convergência dos dois impulsos narrativos de Luhrmann, sua vontade de autenticidade e sua admiração pelo mito.

Mas, por mais que o filme seja cheio de sofisticação no visual e no ritmo, ele segue caminhos bem demarcados dos filmes de cinebiografia. Elvis oferece uma roupagem visual e rítmica que é apropriada ao estado contemporâneo das imagens, à proliferação incessante de informações e de estímulos fortes e rápidos, para uma narrativa que se vale de vários lugares comuns dos dramas de prestígio e dos filmes biográficos: a narrativa de ascensão e queda, a visão sobre excessos da fama, o começo que anuncia o final de antemão, os letreiros de contextualização que surgem antes dos créditos e outras situações familiares. E com isso percebe-se o quanto a originalidade do projeto vem mais de um trabalho de superfície, de organização plástica, do que de suas atribuições dramáticas, apesar do filme ter vários momentos pontuais de interesse. Isso não diz respeito somente à vida factual do Elvis, mas é principalmente sobre como Luhrmann organiza seus momentos delirantes. Novamente, o aspecto caótico da obra desperta uma reação emocional que é, no melhor dos casos, regular. Como se ele não soubesse concentrar e liberar suas emoções. No fim das contas, resta a impressão de termos visto um filme cheio de energia, mas que não transmite muito calor.

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