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Eu, Tonya

Eu, Tonya

Gustavo Pereira - 27 de janeiro de 2018

“Eu, Tonya” conta a história de uma trapaça. Possivelmente, a maior das trapaças da história do esporte profissional. Às vésperas das Olimpíadas de Inverno de 1994, na Noruega, um homem golpeou o joelho de Nancy Kerrigan com uma barra de ferro, a mando de Jeff Gillooly, ex-marido de Tonya Harding, que disputava com Nancy uma vaga na equipe olímpica dos Estados Unidos. Descoberta, exposta, julgada e condenada, Harding foi banida da patinação para sempre, se tornando numa das figuras mais odiadas nos Estados Unidos e, posteriormente, numa piada.

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Tonya Harding nos “Simpsons” (com a barra de ferro)

O filme de Craig Gillespie (“A Garota Ideal”) não faz mistério quanto ao ataque contra Kerrigan. O australiano busca – e consegue – dar camadas à personalidade de Harding. “Eu, Tonya” subverte parcialmente o gênero biográfico por não tratar sua protagonista como uma injustiçada ou uma figura santificada. Em vez disso, aposta numa narrativa que constrói uma figura trágica não pelo destino que caiu sobre si, mas por todos os eventos que a levaram àquele fatídico 6 de janeiro e suas consequências.

A montagem de Tatiana S. Riegel, lembrada pela Academia nas indicações ao Oscar, imprime um ritmo orgânico a todo o filme. A fluidez com que alterna reconstituições das entrevistas dadas pelos pivôs do episódio e os eventos por eles narrados torna “Eu, Tonya”, em linguagem objetiva, gostoso de assistir. Suas duas horas não cansam porque não há material sobrando e Riegel alia momentos dramáticos a alívios cômicos com rara felicidade. O filme nunca cai para o melodrama, mas também escapa da comédia barata. Harding é tratada, pela primeira vez em sua vida, com respeito.

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Allison Janney faz uma LaVona que, se por um lado é abusiva, pelo outro lado é megera.

Pessoas que crescem em lares estruturados, funcionais e felizes tendem a buscar o mesmo quando vão construir suas próprias famílias. Isso também vale para quem tem uma criação abusiva e violenta: o primeiro ato de “Eu, Tonya” estabelece LaVona Golden (Allison Janney, indicada ao Oscar de Melhor Atriz Coadjuvante pelo papel) como o primeiro carrasco de Tonya. Janney trabalha para que sua personagem funcione tanto como principal alívio cômico do filme quanto como uma figura que é um verdadeiro fantasma na vida da filha. Harding é um diamante, formada pela pressão. E essa pressão, que aflora seu dom, também é a sua maldição, manifestada no casamento com o fracassado violento Gillooly (Sebastian Stan).

Margot Robbie (capaz de colocar peso dramático na Arlequina do péssimo Esquadrão Suicida), tem a oportunidade de trabalhar Tonya Harding em três momentos. Durante a entrevista em que dá sua versão dos acontecimentos a patinadora começa irônica e segura, gradualmente se desconstruindo enquanto é afetada pelas memórias do passado. Na adolescência, há um contraste claro entre os momentos em que está no rinque e fora dele, quando ela passa a maior parte do tempo encurvada e com as mãos nos bolsos, claramente fora da sua zona de conforto. Já no breve intervalo entre o auge e a derrocada, Robbie eviscera o destempero de Harding e como as pessoas que a cercaram ao longo da vida impediram que ela amadurecesse emocionalmente para qualquer questão que fosse além da patinação.

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Robbie alterna entre o deslocamento (acima), a euforia, o pânico e a resignação: atuação completa.

O trabalho de Robbie é destacado por determinadas escolhas técnicas: a fotografia de “Eu, Tonya” registra todas as apresentações de patinação com o mesmo esquema de planos e movimentos. Cabe à atriz dar o tom de cada uma, seja ele euforia, desespero, confiança ou ódio. O único problema técnico do filme recai exatamente nessas cenas, pois o rosto da atriz foi inserido digitalmente no corpo de uma patinadora profissional para os movimentos mais complexos, deixando evidente que aquilo não era real. Entretanto, de forma alguma isso o enfraquece. “Eu, Tonya” não é, absolutamente, sobre apenas patinação.

O filme é uma luta da desajustada tentando e falhando ser aceita num meio elitizado, e Robbie exala este confronto a cada pirueta. Sua execução do Triple Axel, manobra que até hoje só foi executada por seis patinadoras (em atividade atualmente, apenas duas a completaram com êxito), seguida de uma comemoração no meio da rotina, representa o “topo da montanha” de uma mulher que lutou desde a mais tenra infância para obter o merecido crédito de um corpo de jurados – e, por extensão, de uma sociedade – que não quer aceitar como o retrato de seu país uma “caipira” desbocada que costura as próprias roupas.

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Há uma quantidade surpreendente de registros documentais das competições de patinação artística no gelo que “Eu, Tonya” reproduz à perfeição. O “drama dos cadarços”, minutos antes da apresentação nas Olimpíadas de 1994, enriquece o episódio ao combinar a reconstituição quadro a quadro do fato com os conflitos mentais enfrentados por Harding até aquele que poderia ser o seu grande momento na carreira.

O principal objetivo de Craig Gillespie é atingido de forma inequívoca: não há redenção para Tonya Harding. Seu destino foi selado ainda aos 23 anos, com uma punição, segundo o filme, desproporcional ao ato cometido pela patinadora. O que “Eu, Tonya” propõe é uma reflexão sobre os motivos para tal punição. Não há sequer a pretensão em se contar “a verdade” dos fatos, apenas dar voz ao lado até então vilanizado. Ao retratar Harding como uma figura “tipicamente americana”, o espectador se vê obrigado a questionar se o grande crime da patinadora foi ocultar o ataque contra sua colega de profissão ou se ela foi condenada por obrigar a sociedade a se olhar no espelho cada vez que ela calçava seus patins.

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