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Festival Ecrã – Sleep Has Her House; O Raro Evento

Festival Ecrã – Sleep Has Her House; O Raro Evento

Matheus Fiore - 22 de julho de 2018

“Sleep Has Her House”, de Scott Barley – ★★★★★

Noventa minutos de fúria da natureza. Scott Barley filma a brutalidade de uma noite na floresta, registrando trovões, chuvas fortes, ventanias e animais selvagens. Pela crueza dos registros e ausência total de elementos que denotem presença humana, é um deslocamento da civilização fascinante – principalmente se lembrarmos que Scott filmou tudo com um iPhone! –, que se assistido da forma ideal, no escuro total, silêncio absoluto por parte do público e som nas alturas, é capaz de nos fazer sentir como se estivéssemos lá, entre as árvores que têm suas raízes testadas pela tempestade.

A impressão mais forte é de estarmos assistindo a um duelo além de nossa compreensão. Uma noite absoluta, que engole as belíssimas paisagens, mas que sempre é rasgada pelos trovões que cruzam o céu. Um dos fatos mais peculiares da narrativa de Sleep Has Her House é observar como a tempestade, inicialmente, habita apenas os céus, até que, lentamente, chega até o solo. Quando isso acontece, a tela é tomada pela escuridão, e a nós, cabe apenas absorver a experiência de estar no olho de uma tempestade.

Não sei se Barley pensou algo do tipo quando montou seu filme, mas foi incontrolável o impulso de, diante da tela preta, fechar os olhos e apenas absorver os sons do vento e da chuva. Aliás, algo que Barley certamente pensou foi no efeito de inserir frases que imputem uma expectativa por algo hermético no início da projeção.

Pela ausência de diálogos e até de humanos, a sugestão de um caráter mais esotérico feita pelas frases de abertura acaba resultando na indução de uma interpretação mística para as imagens projetadas. Barley nos induz a imaginar o duelo de luz e sombra, vento e água, vida e morte, como um embate de entidades além de nossa compreensão.

Sleep Has Her House é capaz de nos transportar para uma região incólume, distante de nossa civilização. Tão distante que nos passa a sensação de ser uma longa viagem. A grande escuridão que domina a tela, portanto, é o portal que nos traz de volta. Uma pena que essa viagem tenha que ter um fim.

“O Raro Evento”, de Ben Rivers e Ben Russell – ★★★

Trancados em um estúdio localizado em Paris, Rivers e Russell filmam, por 48 minutos, discussões sobre magia, metafísica, arte, sociedade e política. No centro da discussão encontram-se intelectuais como Jean-Luc Nancy e Hans Ulrich Obrist. O projeto nasceu de um convite para vários pensadores se reunirem por três dias seguidos e discutirem o tema “resistência”, inspirado nas visões de mundo do filósofo Jean-François Lyotard, que muito discutiu a pós-modernidade.

No meio das discussões, passeia um sujeito vestindo uma roupa verde que cobre todo seu corpo, daquelas que são usadas para inserir efeitos especiais. E Rivers e Russell, claro, fazem uso constante do recurso: o rapaz de verde constantemente passa na frente da câmera e, com ele, efeitos especiais estranhos acabam atravessando e engolindo a tela.

O Raro Evento é um filme deliberadamente cansativo. Nos joga no meio das conversas e as mantém por longos minutos. Em uma delas, faz a câmera girar ao redor dos debatedores sem nunca focar em seus rostos. A obra, portanto, parece debochar da dificuldade de parte do público de manter o foco, fazendo da narrativa, visualmente, cansativa, o que pode levar o espectador a concentrar-se, na maior parte do tempo, não nos diálogos sobre filosofia e sociologia, mas na estranha figura verde que caminha pelo cenário.

Há diálogos específicos que parecem ser o alicerce intelectual do filme, como a mesa redonda do começo da obra, que traz um grupo debatendo sobre magia e manipulação. A intenção, porém, não é aprofundar nenhum dos debates – afinal, se fosse, não faria sentido trazê-los sem início e fim –, mas sim trabalhar a dispersão, estimulando uma forma de aprendizado colateral. Os olhos do espectador se fixam em um objeto que emula o metafísico enquanto a audição é capturada pelos sons diegéticos (pegadas e rangidos de madeira são praticamente personagens) e falas dos debatedores.

O Raro Evento é deliberadamente estranho e incômodo, e mais parece estar interessado em provocar e estimular seu espectador do que fazê-lo realmente compreender as ideias que são discutidas ao longo dos 48 minutos. Talvez o desafio seja justamente esse, desafiar seu espectador a tentar se desconectar da forma fílmica e buscar o conteúdo – e nos fazer sentir falta deste ao negar ao espectador uma contemplação plena dos interessantes assuntos.


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