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Gênero, Pan

Gênero, Pan

Lav Diaz conduz uma visão ambígua e provocadora sobre o ser humano.

Nicholas Correa - 25 de outubro de 2020

O momento em que se elucida o título de Gênero, Pan situa-se perto do início do filme. Os três personagens principais voltam para a ilha natal após uma temporada trabalhando no garimpo na ilha vizinha, em um momento param para descansar e ligam um rádio que transmite uma divulgação científica. O cientista do programa que escutamos compara o cérebro humano com o de um chimpanzé (pan) e ainda estabelece uma hierarquia de inteligência, existiriam os mais evoluídos que conseguem livrar-se do gene do chimpanzé e os mais instintivos e primais que ainda carregariam a capacidade cognitiva do chimpanzé (e nisso o cientista ainda exemplifica a casta superior de seu esquema com líderes espirituais e religiosos). Um momento no mínimo desconfortável dada a aliança de um viés biológico atado ao campo social. As cenas seguintes mostrarão Paulo, o mais religioso dos três agindo como mediador dos conflitos dos outros dois, ele assume uma postura quase paternal ao se esforçar para manter a unidade do grupo.

O primeiro perigo a que uma leitura apressada de Gênero, Pan está sujeita é tomar sua cena titular como sua cena mais determinante. Lav Diaz entra com este filme em um caminho arriscado, ao pôr questões pertinentes à natureza e ao místico em um contexto sócio-político pode-se indagar se ele não estaria tão longe assim de um comentário social moralizante como o de um Reygadas. Mas se em uma obra como Post Tenebras Lux, Reygadas concebe o místico e o divino como uma realidade inconteste e coloca seus personagens humanos sob uma insígnia moralizante desde o princípio na aparição do demônio, Diaz propõe um filme mais ambíguo, mais provocador e bem menos elucidativo. Seu trunfo: não se reconhecer à parte de seus personagens ou da natureza que filma, o mundo é um só e estamos todos nele.

Se há um risco na aproximação do bestial, Diaz por outro lado opera com isso uma recusa à terminologias convencionais e abre o campo de discussão do filme para além de discursos sobre essência; o elemento humano ainda está ali, mas ele permanece inclassificável. Paulo, mesmo aparentando ser uma efígie da civilização dentro do trio ao insistir agir por princípio em detrimento do instinto, é também o membro que mais se resigna, ele pouco se arvora à situação exploratória no garimpo. O que aos poucos fica evidente na primeira metade do filme que segue o trio na mata, é que Paulo é uma figura tão prosaica quanto seus companheiros Andrés e Baldo, o que difere é apenas seu modo de manifestar sua própria condição. O religioso, o culto são elementos civilizatórios na medida em que aparecem como uma experiência comunal, mas quando Paulo soluça em uma oração dentro da mata, seus companheiros não partilham nada além de um constrangimento e de um senso de ridículo.

A chave desse cinema bastante politizado acaba por retornar à uma questão anterior à civilização, a condição do homem diante da natureza. Seja diante Filipinas de Rodrigo Duterte ou diante de um bosque, Gênero, Pan parece ser antes de tudo um filme sobre pessoas que a todo momento buscam dimensionar o lugar que ocupam no mundo. Nisto, a figura dos personagens precisam então ocupar o mundo do ecrã, afirmar uma presença nele. A dramaturgia de Diaz é restritiva, a diretiva dos planos parece se guiar mais pelos espaços do que pelas figuras humanas propriamente. Os personagens não ditam o comportamento do plano que permanece estático, as figuras humanas nunca são atravessadas pelas imagens, mas realizam o contrário, precisam atravessar o mundo na imagem, percorrem o quadro. Se distanciando do caráter metafísico que via-se em filmes como Norte, O Fim da História, Diaz impõe um olhar mais atento ao que é imanente, ao que ele pode observar, à mudança de luz que vê-se ao passar das nuvens, nas sombras das árvores, ou ao som de um córrego no extracampo. O estatuto da imagem, no entanto, ainda permanece um tanto quanto ambíguo, por vezes pendendo para a abstração em seus contrastes. Se há um momento onde esta ambivalência fica mais à mostra, é a cena em que vemos um cavalo no riacho. Sabe-se que a ilha natal dos personagens é alvo de mitos e superstições envolvendo um cavalo negro e também sabe-se que a origem destas superstições são de natureza mercantil e de um contexto sócio-político ao qual os personagens estão alheios. A imagem do cavalo então está sujeita a várias contextualizações, há como tomá-la como uma imagem de encanto simples e cotidiano ou há como inseri-la em uma dimensão mística.

É dessa incerteza que Gênero, Pan irá incorrer, de um certo modo, em uma traição ao próprio título. Tanto o mundo quanto o ser humano são instâncias inclassificáveis: a civilização pode sim trair a si mesma, o humano pode sim abarcar um repertório de princípios na mesma medida em que abarca o vício e a instintividade. Neste filme, trágico e pessimista como os trabalhos pregressos de seu autor, ninguém consegue se encerrar em uma verdade só. Pela metade da projeção, quando apenas Andrés sai da mata e começa a relatar à aldeia o que aconteceu com seus colegas, Diaz insere um mecanismo crucial neste esquema. Tudo que sabemos sobre os momentos finais da trilha é então inserido em uma dimensão de relato, vemos o que Andrés relata aos seus parentes na aldeia, mas também veremos posteriormente as imagens de uma calúnia. O relato da calúnia gera uma outra classe de imagem que difere do restante, uma câmera na mão, uma visão atrelada a um agente humano de uma forma ainda mais sentida. Não há como afirmar uma legitimidade de uma imagem em detrimento de outra, mas é possível inferir nessa operação que ambos relatos, verdadeiros ou não, ganham a oportunidade de se fazerem em imagem.

Tão confuso e perplexo quanto seus personagens agonizantes, Lav Diaz faz um filme político como poucos outros. Explode-se os discursos para contemplar um abismo tanto social quanto existencial. No final de Evolução de uma Família Filipina, depois de trabalharem uma temporada no campo sob condições precárias e verem a dissolução de seu núcleo familiar, uma irmã pergunta a outra “O que faremos agora?” ao que a outra responde “Vamos continuar”. Se por um lado o pessimismo de Diaz por vezes soa determinista, há também de se ressaltar que os personagens de seus filmes não cedem ao desespero tão facilmente. Se podemos falar em humanismo aqui, o que as pessoas que vemos em tela têm em comum, agindo por princípio ou por instinto, é que diante dessa condição ambivalente e irresoluta elas não permanecem indiferentes, ocupam a tela e o mundo cada uma a seu modo.


Esse texto faz parte de nossa cobertura para a 44ª Mostra de São Paulo. Para ir até a página principal de nossa cobertura, clique aqui.
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