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Hardcore: Missão Extrema (2015)

Hardcore: Missão Extrema (2015)

A tentativa de fuga do Cinema leva de volta ao Cinema

Michel Gutwilen - 9 de julho de 2021

O cinema contemporâneo de ação e aventura vive uma crise de identidade. Afinal, se pensarmos em exemplares deste gênero que dominam o imaginário cultural da nova geração, é fácil identificar que eles são provenientes de uma mídia vizinha: o videogame. O equivalente simbólico de um Indiana Jones da geração millenial parece ser muito mais um Uncharted do que qualquer outro filme existente, enquanto franquias como Call of Duty e Battlefield não encontram seus duplos na telona que exercem um mesmo fanatismo popular. Por isso, é cada vez mais comum encontrar filmes de ação e aventura que desesperadamente tentam se apropriar das mecânicas e lógicas internas de um jogo, em uma tentativa de aproximar o Cinema dessa geração cada vez mais acostumada com o ato de jogar do que de assistir. Por outro lado, olhando para o videogame, cabe ressaltar que o jogador moderno está cada vez mais exigente de uma verossimilhança em sua jogatina, o que paradoxalmente faz com que os realizadores busquem inspiração no Cinema, com a proliferação de cutscenes e quick-time events, que retiram parte do poder de jogabilidade da pessoa e concentram sua força dramática na passividade. Ou seja, vive-se um período metamórfico de muita experimentação em que ambas as mídias tentam transpor elementos umas das outras, mas muitas vezes falham por ignorarem sua própria essência e as incompatibilidades entre as mídias. 

É dentro deste contexto paradoxal da dualidade Cinema Gameficado e Videogame Cinematográfico que existe Hardcore: Missão Extrema, um filme que leva ao extremo a tentativa de emular um jogo de ação em primeira pessoa (chamado de FPS). Por mais que a obra seja um desastre, é ao mesmo tempo importante que ela exista, pois é graças a sua análise empírica que se pode chegar a um entendimento teórico das diferenças entre mídias, no qual se chegará a conclusão de que mesmo tentando a todo custo simular a sensação de se estar jogando um videogame, Hardcore nunca consegue fugir de uma característica a qual ele tenta ignorar a todo custo: o fato dele ser um filme.       

A questão central que leva ao fracasso de Hardcore: Missão Extrema passa pelo fato de que seus idealizadores não conseguem enxergar a incomunicabilidade entre o protagonismo em primeira pessoa e a natureza passiva do Cinema. Ora, o que faz um jogo ser uma experiência ativa é a própria jogabilidade em si, o poder de controle sobre o protagonista, realizar suas ações (desde andar até atirar) e sentir que a narrativa depende de você: se você não realizar o que o jogo pede, a história não seguirá ou haverá game over. Dito isso, entende-se que a escolha por uma câmera em primeira pessoa é apenas uma opção estética, entre várias, que potencializa a sensação do jogador de ser realmente o protagonista do jogo, ao equivaler o seu olhar ao do protagonista que ele controla. Logo, esse fator potencializador só existe porque já há na essência do video game a atividade do jogador. 

Assim, o erro do diretor Ilya Naishuller é acreditar que basta utilizar a primeira pessoa para chegar próximo da emulação de uma experiência gameficada — se fosse assim, o clássico A Dama do Lago (1947), de Robert Montgomery, seria o pai dos video games — ignorando que o Cinema é essencialmente uma atividade passiva. Ironicamente, o que mais equivale a sensação da experiência de Hardcore: Missão Extrema não é a almejada por seu autor, mas a de assistir um youtuber jogando para você. Aliás, talvez essa nem seja a analogia precisa, pois na jogatina de youtuber ainda há a presença de um lado humano, de um jogador que está descobrindo as mecânicas do game enquanto joga: ele erra uma ação e tem que repetir a missão; fica perdido sem saber o que fazer; para a narrativa por um tempo e aprecia o cenário; etc. De maneira contrária, não há isso no filme, trata-se da jogatina perfeita, com o protagonista sendo um atirador de mira perfeita, invencível e que sabe exatamente o que fazer. Ou seja, o que melhor define a experiência, na verdade, é  assistir aquelas demos (demonstrações) de um novo título que vai ser lançado, na qual vemos um dos seus próprios realizadores controlando o personagem, treinado para isso. Portanto, ao rejeitar progressivamente o lado humano (e, portanto, o espírito de descoberta e a sujeição ao erro) da jogabilidade, Naishuller dá uma volta em círculos. Na tentativa de fazer um filme que emula um jogo, ele acaba ressaltando mais ainda a lógica de se estar vendo um filme.

Por outro lado, há de se admitir que, ainda que não em imagens, o roteiro escrito pelo próprio Naishuller sabe identificar conscientemente os padrões e clichês da narrativa de um jogo. Para começar, há o protagonista sem memória, cuja própria missão envolve a descoberta de sua identidade, o que é uma premissa típica daquela mídia. Já o início do filme também é idêntico ao de uma fase tutorial, geralmente localizada em um laboratório, que serve para o jogador aprender as mecânicas básicas da jogabilidade, como mexer a câmera, andar e correr. Além disso, o texto pega emprestado os NPCs (personagens não-jogáveis), que surgem momentaneamente ao longo do caminho e vão orientando o protagonista na sua missão e revelando fragmentariamente informações sobre sua identidade. No mais, o ritmo dos acontecimentos é inegavelmente igual ao de um videogame, com seguidas sequências de ação e que vão variando entre o tiroteio, o parkour e a luta corporal. Contudo, novamente o que acontece aqui é dar mera aparência estética de uma outra mídia ao Cinema, mas que em nada adianta isoladamente. 

Volta-se a problemática central: se Hardcore: Missão Extrema existe apenas com o objetivo de emular um jogo, ou seja, a experiência pela experiência em si, sem nenhuma ideia complementar a ser feita, isso significa que se ele não consegue cumprir a sua função emulatória (é o caso), não sobra nada nele. Inclusive, é até curioso constatar como este projeto é uma espécie de “frankenstein” que resume bem esta confusa e recente via de mão-dupla entre Cinema e videogame. Por um lado, é um filme que emula um jogo, mas, por outro, sua principal inspiração parece ser o tipo de jogo que busca ser cinematográfico através da verossimilhança. Todos os elementos visuais típicos que dão a aparência um jogo são omitidos: não há mapa, não há mira, não há a barra de vida do protagonista, os inimigos são mortos como na vida real (com um tiro, ao invés de vários), a ação é perfeitamente encenada como um grande quick-time event. Ou seja, Hardcore: Missão Extrema é a prova concreta de que a fuga do Cinema por completo é impossível, pois quanto mais se tenta fingir que não está diante dele, mais se caminha para um eterno retorno a ele.   

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