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Homem-Aranha: Sem Volta Para Casa

Homem-Aranha: Sem Volta Para Casa

Peter Parker, o verdadeiro herói

Michel Gutwilen - 16 de dezembro de 2021
O texto a seguir contém spoilers de Homem-Aranha: Sem Volta Para Casa.

A exploração da dualidade do jovem civil Peter Parker e do super-herói Homem-Aranha sempre esteve presente em todos os filmes da marca, mas especialmente com Jon Watts e neste seu terceiro projeto, a narrativa parece gravitar ao redor do lado humano de seu protagonista. Ou seja, tudo que acontece em Homem-Aranha: Sem Volta Para Casa existe menos enquanto apenas um grande “fan service” e mais enquanto escolhas narrativas que verdadeiramente transformam o jovem Peter Parker de Tom Holland. Se a trilogia de Jon Watts possui menos êxito enquanto filme super-herói (e isso é um problema que será explorado adiante), pode-se dizer que o seu maior mérito é se encerrar de maneira honesta enquanto uma jornada de coming-of-age (não à toa vieram nos longas anteriores as comparações com o diretor John Hughes).

Assim, o ponto de partida da história (que é uma continuação direta de Homem-Aranha: Longe de Casa) é o da revelação da identidade de Parker e a consequência da fama em sua rotina, na medida em que ele quer continuar vivendo uma vida normal de colegial (e prestar exames para a faculdade), mas com todos a sua volta sabendo que ele é o Homem-Aranha. Neste início, o filme se desvela como uma comédia absurda, explorando hiperbolicamente a perda da privacidade, ditada por um ritmo caótico e exagerado. Há aqui bons momentos que provém de um timing de Watts para a comédia em sua encenação, como quando Peter conversa com os professores da escola, aparentemente em privacidade, até uma panorâmica horizontal revela que a escola inteira estava assistindo o diálogo deles, estando anteriormente apenas fora do quadro). 

Sem surpresas, é aqui que a direção Jon Watts mais consegue imprimir identidade própria dentro deste universo, optando por escolhas não convencionais de decupagem em filme de herói, como uma câmera tremida na mão, no plano-sequência do apartamento, sufocando Pter, e que vai se reposicionando freneticamente de acordo com a cadência acelerada dos diálogos e acontecimentos. É verdade que, neste primeiro ato, o filme perde algumas oportunidades de dialogar com um público jovem contemporâneo, cujo conceito de fama se associa muito aos espaços virtuais, de modo que a exploração da popularização de Peter Parker se dá mais através do mundo real e praticamente ignora a inserção da tecnologia neste processo, parecendo vir diretamente do início dos anos 2000 a 2010. Por outro lado, no espaço público, Watts consegue aproveitar alguns bons planos de Peter se deparando com sua imagem naqueles telões esticados pelos prédios de Nova York, o que acaba por enfatizar simbolicamente, através da relações de grandeza, o fato de que ele é apenas um pequeno garoto cuja imagem foi atribuída para algo muito maior do que ele.

No mesmo sentido, a mesma visão humana pode ser aplicada para a dramaticidade envolvendo o relacionamento de Peter Parker e MJ. Se até agora Tom Holland e Zendaya não haviam sido exigidos enquanto grandes atores, o ato final da trilogia dá uma chance deles elevarem seu nível dramático. Dentro deste romance adolescente, Watts possui a sensibilidade de dar espaço para seus atores trabalharem suas emoções, mas também cria artifícios para dar uma maior dimensão emocional a essas mesmas sequências. O choro de Tom Holland sozinho após a morte de Tia May (Marisa Tomei) é observado de perto por Watts, o dá concretude para a cena, mas a chuva que cai ao fundo permite uma criação de atmosfera que a contamina, tal qual o beijo de despedida entre ele e Zendaya, com um Sol em contraluz, que eterniza o amor daqueles dois enquanto sombras. 

Ora, que o grande ápice emocional do filme aconteça em uma espécie de prólogo, após todo o confronto em termos de ação ser resolvido, mais uma vez se advoga em prol dos interesses humanistas de Jon Watts. Com uma ambientação que parece vir quase que de uma outra era de Hollywood (em um cafézinho que parece a loja de A Loja da Esquina de Ernst Lubitsch e impregnado pelo clima natalino e fabular de Frank Capra em A Felicidade Não Se Compra), o tempo parece parar no quase-encontro entre Tom Holland e Zendaya. Com uma grande ambiguidade na performance dos atores em cena, seja pelo olhar Zendaya, que lida com a curiosidade de parecer conhecer aquele rosto, assim como em Tom Holland, que anseia para que ela lhe reconheça, mas sem poder contar nada, uma pulsão estranha permeia toda aquela cena.  

Se o lado humano redime Jon Watts, definitivamente o mesmo não pode ser dito para o tratamento de suas cenas de ação. Como já esperado — até porque nesse ponto se trata de uma contaminação muito mais industrial do que individual — a grande sequência final de ação não é bem resolvida em imagens. Basta pensar na inserção do Homem-Areia na batalha, cuja névoa de areia em CGI, presente em quase todos os planos (e que já são noturnos), existe muito mais com o propósito de esconder o que acontece na cena. Tampouco Watts possui ideia de como decupar essa sequência, o que é possível ver de várias formas. Quando os três Aranhas estão lutando conjuntamente, a opção por planos gerais acaba desnorteando a identificação por parte do espectador sobre quem é quem no meio de tanto CGI escuro, além da montagem que já é truncada. Igualmente, a sequência é preguiçosamente pensada pelo diretor, pois ele possui pouco interesse em explorar as possibilidades plásticas (e únicas, pois isso jamais se repetirá novamente) de ter os três Homens-Aranhas reunidos, o que significa tanto o modo como ele pensa a coreografia da ação, quanto o próprio enquadramento dos personagens em conjunto. 

Curiosamente, essa “falta de habilidade” de Watts enquanto diretor de ação permite o filme se ressignificar dentro de sua lógica interna. Se o fã de Homem-Aranha esperava por ver o épico encontro triplo brilhar na batalha final, com planos que, se pausados, poderiam virar “wallpapers” (neste caso, seria melhor contratar diretores maneiristas como Sam Raimi ou Zack Snyder), o grande marco desta interação se dá a partir da interação humana entre as três versões do Peter Parker, o que acaba sendo condizente com o que tudo que o filme é. Portanto, ao se afastar do mito e mirar no humano, permitindo que Tobey Maguire, Andrew Garfield e Tom Holland interajam bastante com o rosto à mostra, Sem Volta Para Casa foge da facilidade de agradar o fã que só queria “fan service” e parece genuinamente interessado em usar desta possibilidade para transformar a versão atual de Peter Parker (Holland). 

Até por isso, a cena em que os Aranhas anteriores vão consolar o atual após a morte de Tia May (e que marca o primeiro encontro deles) acaba sendo aquela que se destaca dentro de todas as suas interações. Dos caminhos narrativos que a possibilidade do multiverso poderia levar, o roteiro de Sem Volta Para Casa escolhe uma noção cíclica, de que certos acontecimentos estão fadados a se repetirem, com pequenas variações, dentro de cada universo. Essa identificabilidade permite com que os Aranhas se aproximem não enquanto heróis, mas enquanto pessoas com luto e que sentem culpa. Em alguns anos, quando os fãs se recordarem do que foi esta experiência, eles se lembrarão menos do simbolismo que foi ver os três Homens-Aranhas lutando juntos e mais das lágrimas compartilhadas que saem de seus rostos ou do abraço triplo ao fim da batalha. Afinal, há algo em comum na essência de todo Peter Parker: o bom-mocismo, o altruísmo e o sacrifício. Será mais por ter essas características, e menos por ter superpoderes, que Peter Parker será um herói, o que faz do seu gesto final o mais heroico de todos, fechando o seu verdadeiro amadurecimento em um ciclo de coming-of-age

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