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Jojo Rabbit

Jojo Rabbit

Ria do nazismo. Mas não muito.

Gustavo Pereira - 29 de janeiro de 2020

A ficção moderna, num leque que vai de “Christopher Robin” a “Clube da Luta”, convencionou a figura do amigo imaginário como ferramenta narrativa para o protagonista evoluir dentro de uma história: ele materializa uma necessidade que, ao ser atendida, anula a sua razão de existir. Colocar ninguém menos que Adolf Hitler (Taika Waititi), símbolo-mor do nazismo, como amigo imaginário do pequeno Jojo Rabbit (Roman Griffin Davis) diz, de imediato, que o arco narrativo do protagonista se resolverá quando este superar o nazismo dentro de si. Tal jornada, dado o contexto bizarro do mundo de hoje, ganha uma importante relevância extra-filme.

Jojo Rabbit Taika Waititi Scarlett Johansson Oscar 2020

Porque “Jojo Rabbit” é, antes de qualquer coisa, uma obra provocadora. A sequência dos créditos iniciais, com “Komm gib mir deine Hand” – versão alemã de “I Want To Hold Your Hand” – e registros históricos de comícios de Hitler, traça um paralelo gritante entre o nazismo e a beatlemania. Hitler era visto pelos alemães como um rockstar, objeto de admiração para os garotos e de desejo para as moças. O nazismo não chegou ao poder num golpe, mas via eleições. O que Waititi busca é mostrá-lo por essa perspectiva alemã de idolatria ao führer. Especificamente, pela perspectiva de uma criança alemã que viveu a vida inteira no Terceiro Reich e vê em Hitler o símbolo de todos os valores que deseja para si: bravura, força, popularidade e amor.

Essa leitura quase impressionista – movimento artístico do século 19 que buscava retratar a realidade por meio do olhar, da impressão do observador sobre ela – está muito presente na fotografia de Mihai Malaimare Jr. Há uma relação próxima entre as cores puras e a incidência de luz natural, com contrastes de complemento em lugar de chiaroscuros. Em seu primeiro ato, “Jojo Rabbit” lembra a estética de filmes de Wes Anderson como “Moonrise Kingdom” e “A Vida Marinha com Steve Zissou”.

Jojo Rabbit Taika Waititi Scarlett Johansson Oscar 2020Tal abordagem é importante em duas frentes: na escala macro mostra que, para o alemão médio, o nazismo era visto com naturalidade; na micro, que suas doutrinas foram completamente absorvidas por Jojo. Não há questionamentos. Sem questionamentos, não há liberdade. É natural, portanto, que todo questionamento em “Jojo Rabbit” seja revolucionário per se. As duas figuras que representam essa contradição na utopia do protagonista são sua mãe Rosie (Scarlett Johansson), que organiza um movimento antinazista clandestino, e Elsa (Thomasin McKenzie), jovem judia que vive escondida entre as paredes da casa do menino.

Taika Waititi, que fizera de “Thor: Ragnarok” um grande episódio de sitcom, dessa vez consegue mesclar a comédia com o drama e o suspense de forma muito consistente. Em determinada cena, oficiais da Gestapo vistoriam a casa de Jojo: ao mesmo tempo em que vinte e três cumprimentos de “Heil, Hitler” são trocados em menos de dois minutos, não há a menor dúvida de que aqueles homens, se descobrirem Elsa, a levarão para um campo de concentração, onde ela será morta numa câmara de gás e seu cadáver será incinerado num forno industrial. O nazismo em “Jojo Rabbit” é tão ridículo e digno de riso quanto perigoso e digno de medo. Uma piada que não tem graça exatamente por ser real.

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Na cena de maior apelo dramático do filme, há inclusive uma transição longa, sem diálogos, e com uma mudança perceptível na paleta, uma quase-referência ao “período azul” de Pablo Picasso. É uma catarse construída cuidadosamente para impactar Jojo e o público, sintetizando a ideia central da obra: ria do nazismo, mas não deixe de levá-lo a sério.

Seria equivocado, portanto, concluir que “Jojo Rabbit” “passa pano” ou retrata “nazistas bonzinhos”. A intenção de Waititi é, ao contrário, mostrar o quão sufocante o nazismo é, tornando pessoas que, em outras circunstâncias seriam boas, em peças de uma engrenagem maligna (se você quiser uma abordagem mais “séria” sobre o assunto, leia o excelente “Eichmann em Jerusalém”, de Hannah Arendt). As atuações multifacetadas de Davis, indo do fanatismo à dúvida, chegando à indignação, de McKenzie, ocultando o pavor de Elsa numa “armadura” de sarcasmo, e de Johansson – só a cena em que ela simula um diálogo com o pai de Jojo já vale a sua indicação ao Oscar – garantem o sucesso da investida. Menção honrosa deve ser feita a Sam Rockwell, que planta pequenas pistas sobre a verdadeira natureza do Capitão Klenzendorf ao longo do filme e faz da sua revelação um momento igualmente apoteótico e melancólico.

Jojo Rabbit Taika Waititi Scarlett Johansson Oscar 2020Ao fugir do estereótipo fácil e humanizar o nazismo, “Jojo Rabbit” mostra como um regime similar pode surgir sem muito esforço. Algo que certamente incomodará a parcela da audiência que for ao cinema e vir na tela grande um reflexo de si própria.

 

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