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Kairo (2001)

Kairo (2001)

A fantasmagorização das relações humanas

João Oliveira - 30 de junho de 2020

O que diferencia humanos de fantasmas? Apesar de parecer uma pergunta completamente absurda, Kairo, de Kiyoshi Kurosawa se debruça nesta questão. Pode parecer simples responder à indagação e dizer que somos diferentes dos fantasmas por estarmos vivos, porém, o que realmente significa estar vivo? Interessado na relação humana, o filme do autor japonês imagina um mundo pré-apocalíptico onde a humanidade optou por substituir toda forma de convívio social pelo isolamento, transformando o mundo em um coletivo de fantasmas.

Kurosawa é um grande interessado pelo sobrenatural. Em outros filmes como Séance e Para o Outro Lado, o diretor busca racionalizar o espiritualismo de alguma forma. No primeiro, ele trata aparições como parte do inconsciente coletivo de Jung e, no segundo, fantasmas são explicados através de leis da física. Em Kairo não é diferente. Por meio de um algoritmo de computador, os personagens utilizam do magnetismo para expor como funciona a interação entre fantasmas.

“Quando estão pertos demais, se repelem, mas quando se distanciam demais, se atraem.”

Esta explicação para o algoritmo serve de paralelo às relações interpessoais contemporâneas. Desenvolvidos em um mundo cada vez mais virtual e automatizado, o contato humano se deteriora atrás de uma tela que nos isola da realidade. Como seres humanos são criaturas essencialmente coletivas, o isolamento nos corrompe, nos inibe e nos destrói enquanto indivíduos, restando apenas a apatia. Muitas vezes nos vemos conversando com pessoas anônimas por um monitor e ignoramos quem está próximo de nós. Falamos com fantasmas e tratamos os outros como fantasmas. Para o diretor, a doença do novo milênio é o egoísmo da nossa sociedade e a perda do contato físico é o precursor da fantasmagorização das relações humanas.

Essa inibição de seres é mostrada na maneira em que Kurosawa enquadra seus personagens. Com uso constante da profundidade de campo, o diretor distancia seus personagens por frestas, bordas, grades e vidros do cenário. É interessante notar que muitas vezes o plano cria telas emoldurando tais personagens, como se cada um deles carregasse um alter ego, nunca a personalidade por completo. Mesmo quando estes personagens interagem entre si, o autor encontra maneiras de distancia-los com suas câmeras.

Kairo não é um longa-metragem de terror espiritual, nem mesmo uma película sobre os perigos da inclusão digital. O diretor abdica da abordagem moralista e foca no caráter humanitário da sociedade, é aqui que reside o horror. Apesar dos espíritos existirem dentro daquele universo, não há juízo de valor para culpa-los pela degeneração da sociedade, muito pelo contrário, em uma das passagens Kiyoshi responsabiliza a humanidade pela destruição da sociedade moderna e exime de culpa os espíritos, que nada tem a ver com a nossa solidão voluntária. Aliado à cinematografia de Jun’ichirô Hayashi, o diretor estabelece uma atmosfera fúnebre à narrativa. Cores dessaturadas e sombras bem evidentes ressoam a lamúria desse universo feito pelo diretor e a presença do azul emula a iluminação de computadores, mesmo que não haja nenhum monitor por perto. Além disso, as filmagens externas normalmente mostram uma Tóquio inóspita. Os quadros de Kurosawa retratam uma sociedade depressiva que adoeceu devido à falta de empatia e amor ao próximo onde a tecnologia serviu apenas como potencializador para este distanciamento.

Apesar de não ser um terror espiritual, Kairo conta com a aparição de diversos fantasmas em sua narrativa. Além de tentar fantasmagorizar as relações humanas, o filme coloca espíritos para encarar os personagens frequentemente. Como Kurosawa possui um grande respeito pelo sobrenatural, o diretor nunca trata estas entidades como malignas. Em vez de demoniza-las, Kiyoshi estabelece os espíritos como vulneráveis perante os humanos. Normalmente com uma trilha sonora de acordes graves contrastados por vozes angelicais, estes fantasmas tendem a aparecer para suplicar pelo socorro dos humanos. Isso ocorre porque, para o diretor, a morte é sinônimo da solidão eterna e, após a perda da vida, estes espectros procuram reviver o contato humano.

Kairo é um exercício sobre as relações humanas em um momento de começo da expansão tecnológica. Na imediata virada do milênio, Kiyoshi Kurosawa é capaz de prever o rumo das relações humanas e entende o quão ansioso, distante e fantasmagórico o mundo se tornava aos poucos. O diretor suplica para que não percamos a essência humana que é o contato, pois, sem ele, a vida perde o sentido. No entanto, dezenove anos após o seu lançamento, com o mundo cada vez mais ansioso e polarizado, o filme e seu final catastrófico soam como uma grande premonição do diretor.

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