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Luchadoras

Luchadoras

Vivendo sob constante medo

Michel Gutwilen - 20 de março de 2021

O filme mexicano Luchadoras, uma co-produção com a Alemanha, consegue o difícil feito de harmonizar diversas temáticas, ainda que todas elas estejam ligadas por um ponto em comum. Trata-se de uma obra localizada na cidade de Juarez, no México, que alerta sobre o extremo perigo que é ser uma mulher neste local onde se tem um altíssimo índice de violência e desaparecimentos. Ao mesmo tempo, ele também explora o universo da luta-livre, pois essa é a válvula de escape e o mecanismo de defesa que muitas dessas mulheres acharam para praticar a auto defesa. De mesmo modo, o dia-a-dia de algumas dessas lutadoras é seguido, como o de Lucky Star, que é uma mãe solteira. Além de tudo isso, ainda surge uma questão geopolítica, envolvendo migração, pelo fato de Juarez se localizar na fronteira com os Estados Unidos, especificamente com El Paso.

A dupla direção de Paola Calvo e Patrick Jasim assume um forte tom de denúncia contra os chocantes dados do feminicídio que ocorre Juarez. É recorrente que mulheres trabalhadoras das fábricas nas região sejam violentadas, mortas e depois seus ossos sejam deixados no deserto daquela região. Inicia-se o filme com uma narração em off descrevendo que o capitalismo global se enriquece no deserto mexicano. Posteriormente, é questionado o paradoxo de como um simples muro físico, que demarca a fronteira entre Juarez e El Paso, pode ter de cada lado, os dois opostos: a cidade mais perigosa do México e a mais segura dos Estados Unidos. 

Por esse motivo, é interessante como Calvo e Jasim reproduzem um olhar de Juarez, onde se cria um clima de constante medo e de desamparo às mulheres. Há muitos planos do deserto da região; mostra-se os pôsteres das mulheres desaparecidas espalhados pelos edifícios, vê-se os jornais na TV ou rádio a todo momento noticiando sobre mais alguma mulher que desapareceu. Há até uma cena que as protagonistas acham que estão sendo perseguidas, no momento de suspense mais direto do longa. Tudo isso evoca a sensação de uma fantasmagoria, seja no que se refere a uma ameaça sistêmica dos homens enquanto um mal onipresente, como também reforça a presença invisível de todas aquelas mulheres que desapareceram. 

Em oposição, há também muita vida em Luchadoras, que não é só um filme investigativo sobre aquelas que se foram, mas também das que ainda estão aqui. Opta-se por focar boa parte do tempo na rotina da lutadora Baby Star com suas filhas, existindo um olhar atencioso para inocência infantil e a relação de afeto maternal, mesmo diante de tantas dificuldades materiais e psicológicas. À primeira vista, pode parecer estranho este contraponto dureza-leveza, em que entrevistas tão incisivas sobre a violência contra a mulher são alternadas com cenas de crianças em um parque brincando, mas é justamente esse tom mais leve e humano que parece trazer forças para que se siga em frente. Afinal, elas são o futuro e a motivação para que todas aquelas mulheres sobrevivam e busquem sair daquele lugar. Usando do individual para falar do geral, a trajetória da família de Baby Star é o exemplo de tantas outras famílias que passam pelas mesmas dificuldades.

Paralelo a isso, há também o lado mais curioso em Luchadoras: as sequências de luta livre. Se nos outros segmentos as mulheres parecem tão frágeis e indefesas diante da violência ao seu redor, é no ringue que a situação parece se reconfigurar. A luta, aqui, é a apropriação de um espaço normalmente masculino para que essas mulheres mostrem sua força que até então era silenciada. Por isso, a câmera parece sempre interessada pela plasticidade dos tipos de movimentos mais impressionantes que aqueles corpos podem realizar. Inclusive, a direção entende que esse é o momento de destaque daquelas mulheres, não tendo medo de recorrer a recursos cinematográficos que enfatizem isso, indo do uso de câmera lenta para melhor explorar os golpes até ao uso de trilha sonora mais enérgica que contagia o ambiente. Assim, o ringue assume dupla-função: é o espaço em que o ocorre empoderamento físico da mulher, ao mesmo tempo que é também um palco, onde elas podem ser vistas e ouvidas,  numa cidade que parece ignorá-las. Por isso, no fim, não há nada mais simbólico dessa dualidade apresentada pelo filme do que o fato de Baby Star nunca tirar sua máscara: é uma forma de proteger sua identidade, pelo medo de que algo possa acontecer com ela por estar gravando o filme, como, por outro lado, é também a construção de uma identidade simbólica de uma verdadeira “heroína”, tanto pelos seus gestos enquanto mãe quanto pelos seus feitos enquanto lutadora. Em Luchadoras, ser mulher em Juarez e estar viva, infelizmente, já é um ato heroico.


Este texto faz parte da nossa cobertura para a edição de 2021 do SXSW.
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