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Luna

Luna

Wallace Andrioli - 19 de setembro de 2018

Luana (Eduarda Fernandes), protagonista de “Luna”, vive cercada por um mundo de predadores à espreita. Em determinada cena, ela acessa um chat na internet e aguarda por algum tempo que alguém apareça, até que surge na segunda tela um sujeito de meia idade, de aspecto ameaçador. Noutras duas, ela é assediada por homens na casa de sua amiga Emília (Ana Clara Ligeiro), sendo um deles o próprio pai dessa última. Por fim, Luana tem seu corpo nu gravado por Emília (não é possível confiar totalmente nem em outra mulher) e divulgado por um colega de escola.

Cris Azzi, diretor de “Luna”, é um homem de quarenta anos. Além do distanciamento de gênero, ele também está afastado temporalmente de suas personagens e atrizes. O maior mérito de seu filme é justamente produzir a impressão de não há essa lacuna geracional. “Luna” parece feito pelas próprias protagonistas, tamanho o compromisso assumido com elas pelo diretor. Isso se manifesta tanto no respeito absoluto por suas questões, dimensionando-as como adolescentes de dezessete, dezoito anos dimensionariam, quanto nas formas como filma as duas garotas. Azzi e o diretor de fotografia Luís Abramo escapam da fetichização da nudez dessas jovens, impedindo que ela se torne objeto de consumo para, por exemplo, homens como o visto por Luana no chat. Criam uma atmosfera etérea em torno das duas, mantendo a câmera quase sempre próxima de partes de seus corpos, evitando, dessa forma, planos mais abertos que compreendam seu todo nu.

Dada a presença na história de um vídeo íntimo divulgado na internet, se torna inevitável a comparação de “Luna” com o recentíssimo “Ferrugem”, de Aly Muritiba. Mas enquanto esse último tem no seu centro o próprio ato de divulgação de um vídeo e as consequências dele, o primeiro torna essa questão parte de uma trajetória maior da protagonista. Azzi busca de fato construir o retrato de um momento na vida de uma menina, no qual o cyberbullying é a manifestação mais extrema de um estado das coisas de incerteza e angústia. Especialmente por ser alvo de olhares desejosos de homens (e garotos potencialmente) predadores e vítima de impulsos próprios e de outrem. Daí a possibilidade que existe em “Luna” de uma saída da tragédia absoluta instalada em “Ferrugem”.

O que leva ao final do filme. Mantendo-se condizente com o tom presente no restante da narrativa, Azzi apresenta uma primeira conclusão da jornada de Luana ressaltando, com discrição e delicadeza, sua postura de enfrentamento frontal aos problemas relacionais advindos da exposição pública experimentada. Aparece o primeiro crédito, com o nome da intérprete da protagonista, e o filme continua, numa cena de confronto aberto (verbal, físico e simbólico) de Luana com seus perseguidores. Portanto, esse segundo final destoa do todo de “Luna” a ponto do diretor optar por localizá-lo em meio aos créditos de encerramento, como espécie de easter egg para um público ansioso por catarse.

Ainda que a cena em si seja boa, dialogando com todo um histórico de filmes que se encerram igualmente marcando posição contra a opressão (“Sociedade dos Poetas Mortos” vem logo à mente), a forma pouco orgânica como ela entra na história gera essa estranha sensação de descontinuidade, de algo que rompe com a coesão obtida até ali. Tudo por causa de uma tela preta com o nome de uma atriz entre duas cenas. Há algumas décadas, no texto “Da abjeção”, Jacques Rivette analisou criticamente a opção de Gillo Pontecorvo, no filme “Kapò” (1960), por movimentar sua câmera visando produzir efeito dramático no momento do sacrifício de uma personagem judia num campo de concentração. É curioso (e fascinante) como pequenos gestos e escolhas, aparentemente banais, afetam percepções e interpretações dos filmes.


Texto originalmente publicado como parte da cobertura do Plano Aberto para o 51º Festival de Brasília. Para ler outros textos de nossa cobertura, clique aqui.

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