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Luz nos Trópicos

Luz nos Trópicos

O que salvar das Américas?

Nicholas Correa - 29 de janeiro de 2021

“O mundo começou sem o homem e terminará sem ele.”

Em retrospecto, é difícil apontar uma ideia central em Luz nos Trópicos, não que o filme de Gaitán não possua um eixo, mas essa dificuldade se dá por sua própria ética e visão de mundo ser desafiadora. Tem-se a sensação que Luz nos Trópicos não segue um caminho previamente traçado, que este é um filme que abre trilha conforme avança, como um relato de viagem. Para começar esta que é uma viagem ao coração das Américas, e que pelo título poderíamos inferir que seria mais especificamente sobre uma América tropical, Paula Gaitán começa no gelo. De uma Nova Iorque invernal, o personagem de Igor (Begê Muniz), de descendência indígena, pega um barco e retorna à tribo dos Kuikuros no Pantanal mato-grossense. A câmera avança na via fluvial pelo ponto de vista do barco, o movimento das embarcações molda o enquadramento e a fisionomia do plano. 

É com essa concentração que o filme transporta seu ponto de vista de um lugar para o outro, do centro da civilização ocidental no século XXI para onde estão aqueles que uma vez foram colonizados. Igor vai à tribo do Kuikuros, aprende a língua de seus ancestrais, corta o cabelo e pinta-se, torna-se membro da tribo. Esse deslocamento acompanhado de uma transformação, um retorno às origens, serve de pontapé para que o filme faça um retorno de duzentos anos para uma expedição de colonizadores europeus pelo Pantanal. Um retorno traciona outro. Novamente atravessa-se o território à barco e quanto mais se adentra na região, mais fortes e mais inebriantes tornam-se as impressões sensíveis. A rigidez que as sensações em Luz nos Trópicos eram mediadas desde o início começa a cessar gradualmente e, a partir de um certo ponto, o passado e presente deixam de ser circunstâncias estanques, os séculos se fundem.

Constrói-se uma ética do sensível, algo como percebo, logo misturo-me. O caminho lógico é o da fusão, tudo é parte integral de uma mesma biosfera. Ainda que não pareça ser a intenção de Paula Gaitán atingir uma concepção total do contexto americano, a visão de mundo lançada pelo filme sugere que nada é indissolúvel. Pela fluidez e pelo acúmulo gradual das sensações o filme consegue vislumbrar um horizonte de sentido. Como diz uma das passagens do relato de viagens dos colonizadores, dá-se mais importância ao pôr-do-sol por este ser o símbolo daquilo que se desenrolou nas últimas doze horas, o cumulativo do que aconteceu desde que o astro emergiu da linha horizonte. Com essa lógica de acúmulo e de fruição sensível, Gaitán se debruça sobre o enigma que são as Américas, principalmente a identidade do seu povo. Tendo como princípio que nada é indissolúvel, esse enigma seria então melhor abordado por uma sedimentação de estímulos, enlevos e sugestões para deste processo surgir um corpo sólido.

Não é um caminho fácil, é preciso ter consciência de si mesmo, da importância de cada ação e de cada imagem. Em Serras da Desordem, um funcionário da FUNAI fala sobre como um gesto trivial como acender um isqueiro pode também ser um gesto de destruição simbólica. O fogo, a partir que vira um elemento controlado e apropriado pela técnica de maneira tão eficiente e banal, sua qualidade como um elemento natural (não humano) e, portanto, como um elemento divino perde força. No filme de Gaitán, uma dança dos Kuikuros ao redor da fogueira é interrompida por crianças brincando com luzes de LED. A viagem sensorial de Luz nos Trópicos parece propor uma restituição da importância de cada ação, cada momento é estendido ao máximo, prolongamento este que as mais de quatro horas de projeção tentam suprir. A experiência do filme, principalmente no que diz respeito ao desbravamento da paisagem do Pantanal, torna-se então de apreciação fetichista, quase religiosa.

Porém, teria sentido falar de técnica como oposta à natureza aqui? Uma das particularidades mais curiosas do percurso lógico do filme é que a experiência sensível não exclui operações de anti-ilusionismo como os efeitos ópticos auto evidentes, surgem  ao longo do filme representações que insinuam seu próprio caráter técnico. Da alternância de formatos, da inserção de trechos de Uaka (filme de Gaitán em 16mm), da aparição de pinturas, muito do que se vê ao longo da projeção parece insistir que todas as imagens se vê, até aquelas que se propõem como um registro de mediação realista, se inserem em uma relação simbólica com o mundo. Tudo é metáfora em Luz nos Trópicos, a percepção recortada pelos barcos, os contornos evidentes de um traço de uma pintura, uma modelagem em argila, o que é símbolo e o que é referente se confunde, tornam-se indissociáveis em um mar de movimento.

A visão de Paula Gaitán sobre o continente americano não pretende exatamente esgotar a complexidade de seus desdobramentos ou propor uma investigação analítica sobre ele, mas pretende ser antes de mais nada se debruçar com fascínio e inquietação sobre o mistério do que seria esse território hoje em face do que um dia ele já foi. Mistério porque uma vez que se realiza a mistura o movimento não pode ser revertido, mistério porque depois de nossos mitos originários é impossível pensar em algo como uma ideia pura. O continente americano hoje consegue abarcar desde suas populações nativas e o centro da civilização ocidental que um dia já foi a responsável por colonizá-la. Quando a câmera passa pela Chinatown de Nova Iorque e a trilha no fundo toca Winter in America de Gil Scott-Heron, tem-se a constatação de que é com a heterogeneidade e da multiplicidade que a cada nascer e pôr-do-sol se soma que chegamos à um sentido possível para o povo americano: “ninguém sabe o que salvar”.


Esse texto faz parte de nossa cobertura para a 24ª Mostra de Tiradentes. Para ir até a página principal da cobertura, clique aqui
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