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Mascarados

Mascarados

Sobrevivendo nas brechas

Matheus Fiore - 31 de janeiro de 2020

Um dos grandes fortes do cinema brasileiro contemporâneo é o estudo da relação entre classe e trabalho. O grande expoente desse estudo talvez seja “Arábia”, de Affonso Uchoa e João Dumans, que retrata o isolamento e o processo de desumanização do trabalhador no capitalismo. Há outros bons exemplos, como o recente “Temporada”, de André Novais Oliveira, que faz um recorte que se aprofunda também em questões de raça e gênero ao centrar sua narrativa na personagem de Grace Passô. Até por sua curta duração – apenas 65 minutos –, “Mascarados”, de Marcela e Henrique Borela, se parece um filhote desse cinema de retrato do cotidiano do trabalhador. Um filhote tanto em termos de proposta, quanto de execução. A obra dos Borela é enxuta e simples, deixando muitos acontecimentos importantes de fora da tela, excluídos pelas elipses da montagem – feita pelo mesmo Uchoa de “Arábia”, inclusive. Acompanhamos alguns peões de uma pedreira do interior de Goiás, e os Borela analisam como os personagens se relacionam com esse e outros espaços.

Assim como em “Arábia”, os trabalhadores de “Mascarados” parecem sempre alheios ao mundo, vivendo pelo trabalho e sem grandes pretensões para além do campo de obras. “Mascarados” retrata um mundo já formado e estabelecido, no qual o trabalho justifica a existência do indivíduo, que acaba por se sentir deslocado em quaisquer outros espaços. É como se a liberdade só existisse para que os personagens filmados exercessem suas funções empregatícias, mas sem quaisquer direitos para além delas. Nesse cenário, os personagens encontram respiro para sobreviver entre as brechas do mundo – sempre em canteiros ou locais pequenos e isolados – e intervalos de turnos, quando podem agir como seres humanos, e não robôs.

É interessante observar como essa relação espacial impacta na construção visual de “Mascarados”. A obra possui uma estrutura de planos que segue um ritmo, como se os personagens estivessem presos a um encadeamento de acontecimentos. Além disso, os planos dos personagens trabalhando quase sempre são abertos, ressaltando o tamanho do ofício diante da pequenez daqueles trabalhadores – algo que, mais tarde, é bastante contrastado quando vemos os trabalhadores mascarados curtindo em uma festa em planos mais arrojados. Por quase todo o filme, não há exatamente um sentimento de revolta nos personagens, mas não por ignorância ou satisfação com a própria condição, e sim por uma construção narrativa que sugere que todos estão tão inseridos nessa mecânica social, na qual o trabalhador existe apenas para seu ofício, que não sobra espaço para mais nada.

Como foi pontuado pela própria Marcela Borela no debate que ocorreu na Mostra Tiradentes no dia seguinte após a exibição do filme, não há violência gráfica em “Mascarados”. A cineasta confessa não ter interesse em filmar um ato de violência. Na narrativa, porém, a violência se faz presente pelo sistema e pela divisão social. O fato de os trabalhadores não se sentirem confortáveis em espaços que não sejam o de trabalho, por si só, é a violência. “Mascarados” rejeita a violência física por entender que seria um artifício simples e óbvio demais de se utilizar em um mundo no qual a violência sistêmica ocorre em cada movimento da narrativa.

O que eleva “Mascarados” a um patamar em relação a “Temporada” e que o deixa próximo da obra-prima “Arábia”, porém, é o fato de o filme utilizar a relação das máscaras para aprofundar a relação dos personagens com os espaços. Há, na cidade de Pirenópolis, uma tradicional festa na qual todos vão mascarados. É óbvia a relação de persona criada, na qual as pessoas vestem máscaras para serem elas mesmas e se comunicar apenas pela voz, libertando suas mentes de doutrinações e estruturas sociais – a própria palavra persona, que significa “pelo som, evidencia isso –, e a câmera aproveita a celebração para mostrar como, quando livres dos rótulos de operários, aqueles indivíduos se sentem confortáveis para existir socialmente.

Entretanto, nem mesmo em uma festa, um espaço social de descontração, o trabalhador parece ter chance de respirar por muito tempo nessa estrutura social subjugadora. As autoridades, como mostrado no filme, reiteram que as pessoas não devem permanecer mascaradas por muito tempo. O sistema faz questão de que, mesmo que os trabalhadores possam sentir o gosto da liberdade por alguns momentos, que eles tirem as máscaras, revelem suas faces e retomem suas correntes o quanto antes. Mesmo que não retrate ou incentive a violência, o sentimento despertado por filmes como “Arábia” e “Mascarados” é de que, no mundo capitalista, só mesmo uma revolução daria dignidade ao trabalhador.


Texto originalmente publicado como parte da cobertura do Plano Aberto para a 23ª Mostra de Cinema de Tiradentes. Para conferir toda a nossa cobertura, clique aqui.

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