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Miracle Mile (1988)

Miracle Mile (1988)

O amor e o apocalipse

Wallace Andrioli - 31 de março de 2020

“Miracle Mile”, de Steve De Jarnatt, tem início com um discurso em voz over do protagonista Harry (Anthony Edwards) sobre o amor, seguido de um vídeo explicativo das origens do universo e da vida humana – diegeticamente justificado por se tratar de uma exibição didática num museu de história natural, espaço no qual a trama começa. Esse encontro entre íntimo e cósmico, entre romance e drama apocalíptico, acabará por permear todo o filme. Mas de um jeito nada óbvio. Afinal, “Miracle Mile” não enuncia de forma explícita sua natureza desde o princípio.

As pistas estão presentes (o referido vídeo, a lanchonete chamada “Fat Boy”, que remete aos nomes dados às bombas atômicas lançadas sobre Hiroshima e Nagasaki em 1945, “Fat Man” e “Little Boy”), mas De Jarnatt inicia seu filme como uma história romântica de desencontros relativamente convencional. O efeito decorrente dessa opção é muito poderoso, já que o impacto sobre Harry do telefonema revelador do que está para ocorrer é compartilhado pelo espectador. O absurdo da situação e a incerteza quanto a levá-la ou não a sério são mantidos até os instantes finais da narrativa. Ao não se permitir descolar do protagonista em nenhum momento, “Miracle Mile” permanece ambíguo e aberto ao imprevisível.

Essa abertura é a força maior do filme. De Jarnatt abraça o risco de levar a história por caminhos inesperados, até potencialmente inverossímeis. Cria, com isso, uma experiência cinematográfica bastante radical sobre a imprevisibilidade da existência e que defende sem meios termos a necessidade de se viver intensamente o tempo de vida disponível. “Miracle Mile” se mostra, aqui, apegado ao romantismo apresentado nas primeiras cenas. Trata-se, afinal, de um filme sobre o poder acachapante do amor, seja aquele alimentado por décadas e marcado por brigas das quais os motivos já foram esquecidos, caso dos avós de Julie (Mare Winningham), ou o vivenciado por apenas algumas horas.

Apesar desses temas pretensamente universalistas e atemporais, “Miracle Mile” também é um filme sobre um momento e um lugar específicos. A relativa facilidade com que alguns personagens aceitam o cenário de iminente guerra nuclear denuncia a imersão na paranoia da Guerra Fria como uma característica marcante da sociedade americana na década de 1980. Mesmo localizado nos estertores do conflito com a União Soviética, esse foi um período de algum recrudescimento das tensões, capitaneado pelo governo Reagan (1981-1989). De Jarnatt captura com precisão o misto de medo, descrença e aceitação presente no cotidiano de homens e mulheres comuns de então. Às vezes as coisas são o que aparentam. “Miracle Mile” fala de um contexto em que mesmo as aparências mais absurdas poderiam se revelar realidade.

Mas se parte do cinema americano de gênero da década de 1980 se dedicou a reverberar os valores do reaganismo, tratando os comunistas como inimigos cruéis dispostos a exterminar os americanos inocentes – “Amanhecer Violento” (1984), “Rambo II: A Missão” (1985), “Rambo III” (1988) e “Rocky IV” (1985) são os exemplos mais conhecidos nesse sentido –, “Miracle Mile” passa longe desse tipo de maniqueísmo. No filme de De Jarnatt, são os Estados Unidos que desencadeiam a guerra nuclear, a partir da ação impulsiva de um militar aparentemente paranoico. Algo como o que faz o general Ripper (Sterling Hayden) de “Dr. Fantástico” (1964), de Stanley Kubrick. A lógica da “destruição mútua assegurada”, em voga na Guerra Fria e presente na obra-prima de Kubrick, se materializa aqui da forma mais melancólica possível: colocando fim a uma história de amor. “Miracle Mile” é também um lamento por Harry e Julie não terem todo o tempo de vida juntos que os avós dela tiveram.

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