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Morto Não Fala

Morto Não Fala

No filme, personagens e espaços são meios para evocar variações de gênero

Matheus Fiore - 17 de novembro de 2018

O terror brasileiro vive uma fase bem interessante. Filmes como o peculiar “O Animal Cordial“, de Gabriela Amaral Almeida, e o folclórico “As Boas Maneiras“, de Juliana Rojas e Marco Dutra, apostam na estética característica do gênero para fazer comentários sobre a sociedade brasileira contemporânea. “Morto Não Fala”, de Dennison Ramalho, segue um caminho bem diferente. Aqui, o terror não é um canal para comentários sociais – mesmo que eles existam na narrativa –, e sim o fim. “Morto Não Fala”, como bem disse o crítico Pedro Tavares, da Multiplot, condensa praticamente toda as variações do terror em uma obra que é, de fato, uma ode ao desvalorizado gênero.

Na trama, Stênio é o plantonista de um necrotério que tem a habilidade de conversar com mortos. É comum para Stênio ouvir os mais bizarros relatos vindo da boca dos corpos sem vida, até que, um dia, um desses relatos faz referência direta à vida pessoal do plantonista, fazendo com que ele se baseie na informação para tomar uma atitude drástica. O problema é que há um “pacto” entre Stênio e os mortos: as informações não podem ser vazadas ou utilizadas. Ao fazer isso, o protagonista lança uma maldição sobre si e sua família, colocando todos à sua volta em risco.

Os comentários políticos estão lá a todo momento. A simples seleção de quem chegará ao necrotério onde Stênio trabalha implica um posicionamento . São quase todos corpos de jovens da periferia paulistas, mortos em confrontos com a polícia. O próprio Stênio, que vive em uma comunidade no filme, parece ser alguém acostumado com a morte e com a violência que o cercam. O comentário social, porém, não é um norte para a narrativa, e sim um dos muitos elementos que fazem referência às variações do humor contemporâneo.

A ideia de Dennison parece ser a de fazer de seu filme uma lenda urbana, apresentando um conflito baseado na maldição e contentando-se em entreter com os efeitos do pacto quebrado por Stênio. Em certo ponto do filme, o apelo do som alto dos jump scares pode parecer incômodo, mas, quando o conflito principal está estabelecido, “Morto Não Fala” passa a funcionar apenas como um carrossel de referências ao gênero que abona o recurso. Já a fotografia trabalha criando ambientes sombrios até mesmo no lar do protagonista, que costuma ser iluminado de fora para dentro ou aproveitar a luz projetada por televisores. A própria entrada da casa de Stênio é, em muitos momentos, fotografada como se fosse um portal para a escuridão, totalmente privado da luz.

“Morto Não Fala” passeia por praticamente todas as vertentes e características do terror – de cabeça, só não consigo me lembrar de haver referência ao found footage – e faz de todos eles essenciais para a trama. Até mesmo as características de uma história sobre casas mal assombradas se faz presente, de maneira que a casa de Stênio passa a ser um ambiente opressor para os personagens. E falando sobre os personagens, é interessante aqui é perceber como a obra não tenta dar camadas a eles, utilizando-os apenas como peças para o tour pelo gênero proposto por Dennison. Com exceção do protagonista, todos os humanos do filme são, assim como a casa, ferramentas a ser usadas como vítimas ou pontes para que assuntos ou situações sejam desenvolvidos.

Capaz de construir com qualidade todos os subgêneros que projeta, “Morto Não Fala” é um filme que alcança a excelência por não ter vergonha de propor e executar uma viagem às mais variadas formas do terror, mesmo que isso implique criar passagens mais próximas de um filme B, com efeitos mais simples, que expõem a máscara do cinema. É, portanto, uma obra exemplar por impactar tanto pelos banhos de sangue e tripas que permeiam a jornada de Stênio, quanto pela capacidade de atrelar o DNA de um gênero a todas as escolhas dramáticas de seus personagens. É como se Stênio e os demais personagens vivessem em um universo onde todo e qualquer ato esteja essencialmente conectado ao terror.


Texto originalmente publicado como parte da cobertura do Plano Aberto do Festival do Rio de 2018. Para conferir toda a nossa cobertura, clique aqui.

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