Ajude este site a continuar gerando conteúdo de qualidade. Desative o AdBlock

Mulheres Diabólicas (1995)

Mulheres Diabólicas (1995)

A ruptura estética e social

Matheus Fiore - 3 de fevereiro de 2021

Por boa parte de Mulheres Diabólicas, vemos os esforços um pouco atrapalhados dos patrões para ajudar a empregada doméstica como algo bondoso. A empregada Sophie  (e sua amiga também proletária Jeanne) são as únicas figuras que realmente exibem qualquer traço de maldade na obra. Inclusive, o elo das duas é criado justamente quando ambas descobrem o passado nefasto uma da outra. Mas então, o que Chabrol quer em um filme em que os patrões são supostamente bonzinhos e os empregados, diabólicos?

Não retratar simplesmente como uma dicotomia entre pessoas do bem e do mal é talvez necessário para que a narrativa não caia em um tom simplista um tanto quanto infantil e imprestável para as discussões do tema. Chabrol quer mais do que explorar a natureza dos personagens, mais do que dizer “patrão mau, empregado bom”; quer encontrar o que de fato separa esses personagens. O que leva cada um a ser o que é. Fugir do maniqueísmo em assuntos como luta de classes é essencial.

Talvez o mais importante elemento de Mulheres Diabólicas seja o fato de Chabrol não só respeitar as complexidades de suas personagens, mas também entender o tempo delas e não explorar suas fragilidades. É pedido a Sophie que ela leia algo em dois momentos do filme. No primeiro, por sua amiga também trabalhadora, sua recusa não gera questionamentos, não gera problemas. Jeanne simplesmente aceita que Sophie não quer ler e ponto final. Na segunda, porém, talvez o principal atrito do filme acontece: a filha do patrão insiste ao ponto que passa a questionar se Sophie sabe ler.

A resposta para a pergunta é irrelevante para Chabrol nesse momento, justamente porque sua ideia é exaltar o tamanho da bolha no qual a menina rica está ao ponto de se colocar como uma figura superior, capaz de “ajudar” Sophie sem que ela em momento algum tivesse pedido ou sequer dado abertura para isso. 

Há ainda um elemento definidor para o peso dessas duas cenas: ambas ocorrem na cozinha da casa onde a protagonista trabalha. “Aqui é o seu lugar”, diz a patroa à protagonista quando a apresenta à casa. Nem mesmo lá, porém, Sophie tem qualquer tipo de privacidade. A família a trata como um dispositivo doméstico a ser usado ao bel prazer de cada membro. É justamente por ver que nem no micro espaço que lhe é dado que Sophie consegue ter algum respeito que a personagem se revolta.

Revolta, aliás, é a palavra para Mulheres Diabólicas. Revolta porque Chabrol evidencia a todo momento que diferentes classes não só pensam e sentem diferente, mas habitam mundos diferentes. Atividades simples como ler e dirigir fazem parte da rotina da classe média e inexistem no cosmo de Sophie. Enquanto os ricos jamais tomam noção desse abismo que os coloca “à frente” dos demais, Sophie e Jeanne vivem para entender e reagir a isso. São personagens tão exploradas que a única saída que lhes resta é justamente a rebeldia – e a postura e o visual rebeldes, quase punk de Jeanne, são o caminho para o despertar de Sophie para essas questões.

Quando Chabrol filma a dupla protagonista conversando sobre não ter o que comer e um corte seco nos leva para um jantar caprichado na casa dos patrões, fica evidente que esses dois mundos são separados por coisas tão básicas que não mais importa as boas intenções dos privilegiados, não mais importa que eles não são elitistas “por mal”. Nem mesmo o passado sombrio e a brutalidade dos feitos das duas proletárias importa. O que importa é reagir e causar uma ruptura.

Esse inconformismo latente da protagonista com as condições sociais que vive faz com que o clímax tome o único rumo possível: se o lar dos patrões é um ambiente de organização extrema e Chabrol constrói esse cenário de forma minuciosa e compassada, a completa destruição desse mundo e a implementação da desordem são o caminho. A ruptura é na ordem social e na ordem estética de Mulheres Diabólicas. É uma decisão não só cinematograficamente potente pelos desdobramentos da trama, mas esteticamente essencial para que o filme termine no tom da empregada, e não no de seus patrões. O empoderamento e a revolta são forma.

Fica claro como Chabrol tem, assim como grandes cineastas como Ford e Walsh, um interesse por romper com estereótipos e recortar as complexidades de cada um. Porque os problemas de classe que causam tantos problemas no mundo há tanto tempo vão muito além das intenções e do que conscientemente fazem as pessoas. É uma sina que se tornou construção de mito, se tornou manutenção de um modelo de sociedade. Não aceitar, não se curvar e não obedecer é o primeiro passo para a reação.

Topo ▲