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No Mundo da Lua (1991)

No Mundo da Lua (1991)

A magia acontece no campo da inocência

Michel Gutwilen - 26 de fevereiro de 2021

Duas irmãs vivem no campo com seus pais. Dani está com 14 anos e sonha com seu primeiro beijo. Maureen é um pouco mais velha, com 17 anos, já dirige e tem seu próprio namorado. Em comum a elas, um amor (ou uma veneração): Elvis Presley. O cantor marca presença nos posters espalhados pela parede do quarto que elas dividem e sua música é constantemente reproduzida na vitrola. Elvis é como o símbolo de um ideal masculino, do “homem perfeito”. As duas meninas do interior norte-americano vivem a vida esperando a chance de serem escolhidas por um homem desses. No primeiro diálogo entre elas, a mais velha compartilha suas inseguranças sobre nunca sair da pequena cidade e não encontrar um homem perfeito, o que leva a um diálogo sobre a fábula do homem da Lua.

Não à toa, quando No Mundo da Lua começa, a trilha sonora toca Elvis e o primeiro plano do filme tem como imagem uma lua cheia brilhante, mas depois, sem cortes, vai redirecionando seu olhar para a casa onde irmãs vivem, mostrando-lhes se preparando para dormir. Esse movimento de câmera, que vai do céu em direção ao chão, já pode ser visto como símbolo da comunhão entre o mundo ideal e o mundo real, indicando que, nesta obra, não há ruptura entre os dois. 

Ainda nesta cena, é curioso como o diretor Robert Mulligan, ao dar zoom na casa, coloca, no centro do plano, Maureen se despindo e ficando de roupas íntimas. Ou seja, a primeira impressão visual daquela personagem é no sentido de ressaltar seu corpo, um símbolo de anti-inocência. Essa escolha prenuncia a dicotomia que marcará as aventuras vividas pelas duas irmãs com o mesmo rapaz: enquanto Maureen terá uma relação que se consuma carnalmente; a de Dani envolve uma paixão platônica. 

A fazenda que aquelas irmãs vivem parece fazer parte de um mundo bucólico imaculado. Vemos Dani correndo, em liberdade, pelo campo verde, com a câmera acompanhando a garota em velocidade; surge uma trilha sonora alegre, que se mistura com os sons diegéticos dos pássaros. Em seguida, Dani joga sua roupa no chão e pula pelada em um rio, cujas águas refletem o brilho do Sol. É o abandono da materialidade para a total harmonia entre humanidade e natureza. Toda essa sequência envolve uma pureza que faz parecer como se estivesse no Paraíso, onde não há mal, somente pureza. Mulligan consegue criar uma ambientação espiritual, ao mesmo tempo que sem nunca abandonar o realismo, do campo. Somente grandes cineastas como Jean Renoir, com Um Dia no Campo; Ida Lupino, com A Culpa É do Mundo; ou Maurice Pialat, com Van Gogh, (para ficar em poucos exemplos) conseguiram filmar. 

Eis que tudo irá mudar quando um garoto desconhecido surge do nada — como um elemento estranho no Paraíso — e pula no rio, sem saber que Dani estava lá, pelada. Desconcertada, ela pede para o rapaz se virar enquanto sobe d’água. Porém, com a curiosidade típica de um jovem adolescente, ele se vira para observá-la. Quando se viu o corpo nu de Dani pela primeira vez, se livrando de suas roupas para pular na água, tratava-se de um símbolo de liberdade e inocência. Não mais, porém. Agora há uma ‘maculação’ do olhar, há vergonha do corpo (marcada pela tentativa de se cobrir), pois se sabe que ele é objeto de desejo e de curiosidade da adolescência. 

Esse primeiro encontro com o rapaz acaba culminando em uma cena onde Dani, momentos depois, está escutando Elvis em sua vitrola, abraçada em um travesseiro e “sonhando acordada”, com os seus olhos em direção ao vazio. Agora já é tarde demais e a menina finalmente viu ser possível a existência de um príncipe real, não sendo mais apenas algo distante que ela escutava nas músicas de Presley. Inclusive, o menino carregará o peso de Dani ter personificado nele, inconscientemente, a figura idealizada de seu ídolo perfeito.  

Passa-se então a acontecer o típico desenvolvimento de um romance de coming-of-age, onde mise-en-scène de Mulligan é muito delicada ao misturar o espiritual e o real, dando tons mágicos ao momento que Dani vive, a partir de pequenas sutilezas. Está tudo nos pequenos detalhes: quando ambos voltam ao rio, a câmera se posiciona atrás do garoto e o Sol reflete nos pingos de água em suas costas, o que lhe confere uma presença quase que “iluminada”. Nesta mesma cena, Mulligan realiza um plano-detalhe nas mãos dos dois entrelaçadas, pois, neste romance, esse é o maior símbolo de aproximação possível (em contraposição a aventura carnal que será vivida por Maureen). Uma outra cena que carrega esta ambiguidade entre o real e mágico é quando Dani está praticando um beijo em uma maçã e a iluminação do Sol bate parcialmente em seu rosto. O diretor jamais debocha daquele sentimento de paixão, mas entende a magia que o mesmo provoca.

Porém, logo depois de Dani quase trocar o seu primeiro beijo com o rapaz no rio, cai um temporal e sua mãe, grávida, passa a procurar por ela, consequentemente sofrendo uma queda e indo para o hospital às pressas. A retratação dessa tempestade ganha uma liberdade poética, com uma chuva e raios exagerados caindo, uma iluminação intensa e um tom de desespero nos personagens acima do naturalista, quase que como uma sequência tipicamente de um pesadelo. Assim como em muitos slashers norte-americanos, o que acontece parece ser um tipo de punição (divina?) aos pecadores, como a chuva causando o acidente de sua mãe. Por conta disso, Dani passa a se sentir culpada indiretamente. Neste mesmo sentido, não à toa, o acidente fatal com o rapaz, será nos mesmos moldes: 1) não há nenhuma intervenção humana, apenas o próprio “destino”; 2) o acontecimento se localizar logo após ele realizar o ato sexual com Maureen, sendo tanto uma punição a ele por estar envolvido com as duas irmãs como pela prática do ato em si. 

Então, ligando todos os pontos apresentados até aqui — idealização de uma figura masculina perfeita; a comunhão entre o mundo espiritual e o mundo terreno; os “acidentes da natureza” (divinos) como resposta a maculação da inocência — é como se No Mundo da Lua fosse uma fábula sobre a perda da inocência a partir da experiência feminina. Esta, pode ter tanto seus momentos mágicos — ambas as irmãs acharem estar vivendo um romance dos sonhos com um protótipo de Elvis Presley ‘caipira’ — mas também pode trazer duros choques de realidade — as decepções e falhas que esse mesmo rapaz mostrará, provando que o homem perfeito não existe, pelo contrário. 

É como se Mulligan fizesse um grande ode à inocência, com um universo com forças próprias, que constantemente tenta impedir que aquela infância platônica seja estragada pelo contato com o real (ou seja, o Mal; ou seja, o homem), mas acaba sendo superado pelas vontades e curiosidades daquelas duas meninas. Afinal, que bom que isso acontece, pois o amadurecimento é necessário, somente o contato com a desgraçada pode levar a uma mudança de espírito e, ao fim da jornada, os laços entre as duas irmãs parecem aumentar ainda mais. No fim, repetindo o plano inicial, só que de maneira inversa, a câmera sai da casa e vai em direção à lua, fechando essa espécie de ‘fábula’ que fora apresentada até aqui. O “Homem da Lua” (título original do filme) parece ter cumprido seu papel na vida das duas irmãs. 

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