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Notícias de Casa (1977)

Notícias de Casa (1977)

Solidão cotidiana na Nova York setentista

Wallace Andrioli - 15 de novembro de 2019

Apesar de inicialmente se tratar de um filme “difícil”, dado seu reduzido material narrativo, “Notícias de Casa”, de Chantal Akerman, consegue comunicar. Num primeiro nível, funcionando como uma espécie de exposição fotográfica, formada por registros de paisagens um tanto desoladoras da Nova York dos anos 1970. Cenas cotidianas de uma cidade totalmente desglamourizada, que evocam uma decadência típica das grandes metrópoles.

Há uma segunda camada comunicacional, com o olhar cinéfilo em parte formado pelos filmes da Nova Hollywood. Neles, a Nova York suja e violenta desse período é personagem corriqueiro. É a cidade de “Caminhos Perigosos” (1973), “Taxi Driver” (1976), “Serpico” (1973), “Um Dia de Cão” (1975) e tantos outros, reconstruída recentemente em “Coringa” (2019). O imaginário povoado por esse cinema, aliás, alimenta no espectador certo receio de que algo de ruim aconteça com Chantal Akerman e sua equipe em algum momento de “Notícias de Casa”, enquanto trafegam por ruas e vagões de metrô com uma câmera na mão. Mas a vida em grandes cidades costuma ser muito mais multifacetada que a imagem pública associada a elas. Os males que acometem Akerman são outros: a solidão e o tédio, impressos nas imagens do filme, e principalmente a relação de simultâneas saudade e rejeição da família, que se encontra distante, na Bélgica.

Esses são, aliás, componentes habituais do cinema da diretora. Mas, ao contrário de alguns de seus principais filmes ficcionais dos anos 1970, como “Je, Tu, Il, Elle” (1974), “Jeanne Dielman, 23, Quai du Commerce, 1080 Bruxelles” (1975) e “Os Amores de Anna” (1978), que ainda têm um fio narrativo a seguir, “Notícias de Casa” se desobriga consideravelmente nesse sentido. O documentário como espaço de experimentação amplifica o olhar íntimo de Akerman, dedicado à banalidade das ações cotidianas, àqueles momentos em que, como diz o título do livro de Ivone Margulies sobre a diretora, “nada acontece”.

Nem sempre se sabe o que está filmando, lembra João Moreira Salles no início de “No Intenso Agora” (2017), ao analisar um vídeo de família. Akerman era uma cineasta rigorosa, sempre bastante consciente das escolhas visuais de seus filmes. Ela sabia o que estava filmando e “Notícias de Casa” não é um filme caseiro. Ainda assim, ele captura dimensões não previstas pela diretora. A assombrosa cena final é um belo exemplo disso. Nela, Akerman deixa Nova York numa barca. Seu olhar-câmera enquadra a ilha de Manhattan que vai se afastando, permitindo que novos prédios surjam numa paisagem acinzentada ameaçadora. Em determinado momento, o World Trade Center também aparece.

Para Akerman, naquele contexto, as Torres Gêmeas se reduziam a parte desse cenário opressor que era a sua Nova York, espaço de solidão e melancolia, contraposto ao afeto em alguma medida também opressor de sua mãe. Visto hoje, no entanto, o plano final de “Notícias de Casa” também evoca, de forma praticamente inevitável, o destino desses prédios, sua associação à trágica morte de milhares de pessoas em setembro de 2001. As imagens não são estanques, elas se metamorfoseiam no tempo, são ressignificadas por quem as olha em momentos distintos.

Mas o componente estruturante de “Notícias de Casa” é mesmo a sobreposição das imagens da cidade norte-americana à leitura das cartas enviadas pela mãe da diretora. Aqui são criadas duas camadas de cotidiano que se interpenetram. Surgem ruídos entre elas, a presença recorrente da mãe cobrando por notícias parece impossibilitar a totalidade da experiência de Akerman, então uma jovem de vinte e poucos anos, em Nova York. Mas há também complemento, reforço mútuo. Akerman filma ações banais dos nova-iorquinos; sua mãe, em meio aos apelos por uma comunicação mais frequente, relata uma série de acontecimentos corriqueiros da família. Não há fuga possível diante desse imenso “nada” que tudo consome.

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