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O Conto de Inverno

O Conto de Inverno

Sobre a fé e o território

Victoria de Castro - 10 de janeiro de 2022

Depois das terríveis tragédias e tribulações que o rei Leontes e sua família passam na peça “Conto de Inverno”, de William Shakespeare, a história se encerra com uma situação inesperada: Paulina diz possuir uma estátua da finada rainha Hermíone, tão finamente cinzelada que parecia viva. O Rei Leontes (que antes havia a humilhado devido à uma falsa acusação de adultério), juntamente com Polixenes, Florizel, Camilo e sua filha Perdita, observam a estátua de Hermíone ganhar vida diante dos seus olhos – para a surpresa de todos.

Essa mesma cena viria a influenciar Éric Rohmer, na criação do seu próprio Conto de Inverno, lançado em 1992. “A temática de The Winter’s Tale de Shakespeare está muito longe da do meu filme, mas o que conto tem de maravilhoso inspirou-me a mostrar um pequeno trecho dele no filme. (…) A cena da obra que eu filmo é, precisamente, a que me deu a ideia para o meu conto de inverno”.¹ Fundindo filosofia, ciência, religião, metafísica e empirismo em sua história, parte na trajetória de Félicie, um corpo errante no inverno parisiense, que vaga pelas ruas, como se seu deslocamento fosse uma tentativa inconsciente de materializar sua fé.

O filme se inicia com a nossa protagonista num verão encontrando o amor que vai acompanhá-la metafisicamente nos próximos 5 anos. É nesse desencontro que mora o desconforto e a falta de acomodação da personagem; vemos Félicie em constante movimento, ao mesmo tempo que mora com a mãe, mantém dois relacionamentos, onde se divide em passar tempo com Maxence em seu salão de beleza – não em sua casa, pois o mesmo é casado – e conviver com Loïc na casa do mesmo. Félicie se vê nessa posição pois, para ela, esperará para sempre a volta de Charles, o amor que encontra no milagroso verão alguns anos antes; este é idealizado e romântico pois nunca amou alguém depois dele e nunca amará. Então vemos que a incomodidade da personagem perpassa muitos lugares, no fato de não se fixar em um relacionamento, tão pouco se fixar fisicamente, morando num apartamento só seu, por exemplo. A vida transitória de Félicie tem o ar deleuziano, flertando com a ideia de desterritorialização; negando estar num relacionamento tradicional e católico, Félicie está negando, mesmo que temporariamente, seguir normas do patriarcado; não se casa enquanto não reencontrar seu amor, não se fixa enquanto não encontrar seu amor, e ao longo da jornada de rebeldia, da sua linha de fuga, que a personagem se vê numa jornada intelectual, humana e espiritual. É no confronto com ideias diversas que ela consegue percorrer o caminho que irá levá-la até o seu milagre pessoal, onde se vê na igreja que é o local da sua revelação divina, onde sente que irá reencontrar Charles em breve.

Rohmer apresenta de forma magistral a ideia de se viver a filosofia no dia a dia e de falar de filosofia juntamente com religião, porque a fé e o milagre, temas canonicamente católicos, perpassam o ato de filosofar. Segundo Calac Nogueira Salgado Neves na sua monografia O REALISMO NO CINEMA DE ÉRIC ROHMER: (…) para Rohmer, não é possível filmar a intervenção divina senão quando ela se manifesta nas coisas, nos seres e no mundo.” Nesse trecho conseguimos ver o casamento que Rohmer faz entre a religião e a filosofia, aquilo que é divino, mas ainda sim humano e mundano, que vai se apresentar plenamente com a imagem de um rosto, uma reação, um movimento corporal, a realidade física, assim como em Raio Verde, onde Rohmer filma em plano e contraplano a reação do casal, suas feições e o raio verde em si se manifestando no horizonte.

Nossa protagonista se vê inserida em discussões filosóficas com aquele que é seu namorado intelectual e não entende teoricamente o assunto que é abordado, mas se debruça nele. Mesmo se dizendo “ignorante”, não tem medo de errar e de perguntar – percebemos um leve desconforto na personagem, mas o que não a impede de tentar entrar no assunto – e ter dúvida é um dos pilares do ato de se filosofar, admitir que não se sabe. Depois de ir ao teatro com Loïc para ver a peça de Shakespeare que dá nome ao filme, Félicie, enquanto está num carro em movimento, conversa sobre sentimentos e percepções da vida com Loïc, fala sobre filosofia e fala sobre poesia, mas agora não há peso – na cena que citei anteriormente, Félicie se envolve no assunto, mas aqui a vemos completamente livre e sem medo de julgamentos – e vemos sentimentos genuínos, Rohmer consegue transmitir o sentimento do prazer e da profundidade da troca humana, na cena que eu diria ser a mais complexa do filme. O fato dos personagens estarem dentro do carro em movimento, depois que Félicie nega ir para casa e aceita pernoitar na casa de Loïc, retoma a ideia de se estar em constante mudança, não se acomodar.

Então, Félicie vive sua vida em função da fé do reencontro, a imortalidade da alma – ela e Charles poderiam ser donos de almas que já viveram muitas vidas juntos – e não finca raiz porque não se dá por vencida, porque acredita no milagre que precisa acontecer para que ela possa continuar percorrendo o seu caminho; não é indecisão, não nos deparamos com uma protagonista confusa, mas uma mulher que não se acomoda porque sabe onde quer chegar, e esse lugar é ao lado de Charles. Sua fé – que se complementa intimamente com seus pensamentos filosóficos – foi experimentada, sentida, investigada pela personagem, partindo de uma profunda expressão humana para ser exercida em vida.

O filme termina com a filha do casal, fruto do amor de verão 5 anos antes, chorando porque vê seus pais juntos, e repete a frase da mãe: “Estou chorando porque estou feliz”, e a cena se segue enquanto os letreiros finais passam, e, como todo resto do filme, é cotidiano, é mundano e é lindo, e é a beleza do que se é real e palpável.

¹ – Cahiers du cinéma, nº 452, Fevereiro, 1992
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