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O Diabo de Cada Dia

O Diabo de Cada Dia

O fanatismo religioso e os horrores vividos na guerra como um mal que passa de geração em geração.

Michel Gutwilen - 16 de setembro de 2020

O texto a seguir contém spoilers de “O Diabo de Cada Dia”.

Um tema recorrente na filmografia de Antonio Campos é a batalha interna que lutamos contra nossos próprios demônios. Estes, podem ser tanto inatos quanto recebidos de influências externas. Em Depois da Escola (2008), um arquétipo de um adolescente introspectivo consumia pornografia sadomasoquista demais na internet e passou a replicar inconscientemente este tipo de violência em seus atos. Agora, em O Diabo de Cada Dia, a narrativa vai para longe do mundo digital e abarca um longo período, o entre-guerras norte-americano, que vai da Segunda Guerra Mundial até a Guerra do Vietnã. Apesar de serem duas épocas bastante diferentes, trata-se de uma nova investida do diretor neste “filme-tese” sobre a natureza humana e a perversidade — seja a violência física ou sexo. Porém, a temporalidade aqui também importa, visto que trata-se de uma narrativa geracional. Não há um único protagonista, mas diversos, de diferentes famílias e gerações, com os pecados de seus pais passando para os filhos de maneira cíclica.

Primeiro, a geração mais velha é moldada na base da violência pela experiência da Segunda Guerra e por um forte fanatismo religioso. Já existe neste primeiro nível a influência dessas experiências na vida dessas pessoas. Suas ações envolvem uma fé cega e sempre a violência como via de se resolver as coisas. Posteriormente, a narrativa passa para seus filhos, que são criados nos mesmos moldes. Todas as situações se desenrolam em um efeito dominó de consequências negativas geradas por este tipo de criação. Há um ciclo, tanto familiar quanto entre-famílias, como a narração deixa claro desde o início de que todos são parte de uma mesma comunidade. Já ao fim, quando há um flerte com a possibilidade de quebrar essa maldição, a rádio anuncia a chamada para Guerra no Vietnã. O personagem de Tom Holland está em conflito entre ir para a guerra (porque ele é bom de briga) ou se finalmente vai tentar ter uma vida normal. Eis aí o grande mote de O Diabo De Cada Dia: é possível fugir de nossos demônios? Nós somos violentos ou fomos ensinados assim? O ciclo será retomado ou quebrado? Haverá uma nova geração de filhos que já terão seu destino traçados pela experiência dos pais nesta nova guerra que chega?

Por conta desta narrativa que vai alternando entre diferentes núcleos a cada momento, tanto de personagens quanto no tempo, a montagem é um fator importante na mise-en-scène de Campos. Neste sentido, nunca há uma mudança muito abrupta entre eles, mas um senso de continuidade neste estranho vai-e-vem que não segue exatamente uma ordem cronológica. Como apontado pelo narrador onisciente na cena final, “conforme os pensamentos vinham, ele não sabia mais o que era presente e futuro”. Voltando a ideia do parágrafo anterior, todo este jogo da narrativa indica este caráter cíclico, essa indicação de que o futuro está condenado a repetir os mesmos atos do passado, de que somos ecos da educação de nossos pais. No entanto, O Diabo de Cada Dia acaba caindo na mesma armadilha de diversos filmes com histórias paralelas. Alcançar a organicidade de toda esta cosmologia interligada é difícil e por muitas vezes um núcleo não recebe o desenvolvimento o suficiente, sendo destoante do resto e dando a impressão de que só existe para deixar a história “redondinha”. Este é o caso de tudo que envolve os personagem de Sebastian Stan e sua candidatura política, apesar do mote da violência estar presente em sua subtrama.

Um outro elemento narrativo que acaba sendo de vital importância é a narração onisciente, que nos guia nesta viagem entre passado e presente, nos dá pequenos spoilers e sabe o que se passa na mente dos protagonistas. Claro que em um primeiro momento isto pode soar como uma facilitação de roteiro e uma falta de confiança de Campos nas imagens, mas existe todo um sentido no modo como este recurso integra sua unidade estilística. Em um filme no qual a religião é um elemento muito importante e os personagens estão constantemente buscando a Deus, esta voz que guia os acontecimentos reforça a ideia de que seus destinos já estão traçados por uma entidade maior. Além disso, essa liberdade poética afasta a história de um lado mais realista e o aproxima de um conto assumidamente fictício, o que remete ao ponto do diretor estar muito mais interessado em fazer um “filme-tese”.

Dito isso, se o trabalho de Campos previamente já recebia algumas acusações de ser um cinema “vil” e “moralista” disfarçado de um estudo da condição humana (penso que Depois da Escola consegue fugir disso, porém Simon Assassino dá brecha para as críticas), talvez seja em O Diabo de Cada Dia que exista uma linha mais tênue entre esses dois lados. Isto fica mais explícito quando o roteiro e as imagens se voltam para a temática religiosa. Por um lado, poderia ser dito de que ela é apenas um pano de fundo e o que verdadeiramente importa para o diretor é esse estudo de como o seguimento cego à certas crenças nos moldam. Por outro lado, sua mise-en-scène parece estar muito preocupada em debochar de maneira simplista e evidenciar um lado da religião extremamente caricato. Primeiramente, questiono as atuações histriônicas de Robert Pattinson e Harry Melling, algo que parece ser um problema mais de direção de atores do que a qualidade desses. Somado a isso, Campos filma todas as cenas de culto como se realmente fossem um grande teatro e aqueles homens fossem atores, conforme sua câmera vai passando pelos fiéis como se eles fossem idiotas de uma platéia. Como dito acima, enxergo que se trata de um “filme-tese”, mas nem por isso é confortável este olhar simplificado do diretor para fenômenos complexos nos quais ele resume à insistência da mensagem de que “o fanatismo religioso pode ser perigoso e que muitas pessoas ruins usam da fé para esconder sua perversidade natural”.

No fim, o filme de Antonio Campos parece soar muito mais honesto de suas intenções quando não está preocupado em fazer qualquer tipo de filme político, mas em ser este estudo da violência — que é retrada sem nenhum tipo aparente de “vilidade”, mas com a dureza que os acontecimentos pedem para que sintamos seu impacto na vida dos personagens — em um microcosmos de famílias norte-americanas no período entre-guerras.

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