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O Fim da Viagem, O Começo de Tudo

O Fim da Viagem, O Começo de Tudo

Uma jornada de autoconhecimento e aceitação de que liberdade e risco andam lado a lado

Matheus Fiore - 12 de setembro de 2019

“O Fim da Viagem, O Começo de Tudo” parece um filme feito em um intervalo, como se sua personagem principal, durante um espaço de tempo, se visse perdida, aprisionada. Yoko (Atsuko Maeda) é a apresentadora de um programa japonês de curiosidades culturais que, juntamente com sua equipe, viaja para o Uzbequistão para gravar uma edição sobre os costumes locais. O que se vê a todo momento porém, é uma personagem que se sente aprisionada. Yoko se sente em um ambiente hostil, algo que Kiyoshi Kurosawa potencializa já nos primeiros momentos da trama, ao nos jogar no meio de diálogos falados em usbeque sem que nenhuma legenda ou dublagem traduza o que é falado. Entretanto, mesmo que em um primeiro momento  a obra possa parecer estar estudando apenas o choque cultural entre japoneses e usbeques, aos poucos Kurosawa descama sua protagonista e mostra que, na verdade, o maior conflito está no fato de Yoko estar em um momento de passagem, um intervalo que a separa de tudo o que a conforta: seu país, seu lar, seu namorado etc.

Esse choque cultural até é utilizado narrativamente. Mas Kurosawa não faz disso o único foco de seu novo filme. A ideia é a de que o choque exista para testar a zona de conforto da protagonista, que parece sempre estar acuada em um ambiente desconhecido. Por exemplo, o arroz, um dos alimentos mais típicos da culinária japonesa, a ela é oferecido cru, ressaltando essa desconexão como uma forma de revelar essa dificuldade da personagem em lidar com o espaço e costumes que a cercam. Em um diálogo-chave, quando Yoko acaba em uma delegacia, o policial diz que eles não podem se conhecer se não houver diálogo, escancarando a situação na qual a personagem se encontra: com dificuldades de adaptação, mas também sem esforçar-se para melhor compreender onde se encontra.

A construção da mise-en-scène do filme valoriza bastante esse isolamento de Yoko. Os planos, por exemplo, deixam quase todo o cenário focado, mas posicionam Yoko sempre distante dos outros personagens, sejam eles os locais ou os japoneses que trabalham com a jornalista. Essas imagens constroem, portanto, um espaço geográfico amplo, vasto, mas que jamais é explorado por essa personagem, que busca sempre o canto da tela ou caminha em direção à saída do escopo da câmera. Em um interessante diálogo sobre o mar, um usbeque fala sobre como, para ele, o mar simboliza a liberdade, enquanto Yoko discorda, afirmando ver o oceano como um lugar perigoso. Kurosawa, por sua vez, parece não encarar essa visão de Yoko como algo correto, já que toda a ideia do filme é retratar a personagem explorando seus limites. Portanto, o que Yoko parece não perceber é que a liberdade vem carregada justamente dos riscos de tentar algo novo.

Em vez de utilizar seu roteiro para destrinchar a situação, porém, Kurosawa adota um olhar bastante contemplativo e, em alguns aspectos, documental. Algo semelhante faz o sul-coreano Hong Sang-soo (de “A Câmera de Claire” e “Na Praia à Noite Sozinha“. Kurosawa, porém, apresenta uma estética diferente, e utiliza uma câmera que está sempre em busca de metáforas e simbolismos que ilustrem o que o silêncio e a apatia de Yoko significam. Quando a personagem está em um carro, passeando pela cidade, por exemplo, em vez de contemplar a bela vista que a cerca, prefere olhar para baixo, como se não se encaixasse no local, mesmo que a paisagem esteja, inevitavelmente, projetada sobre seu rosto graças ao vidro da janela – como se a presença dela ali fosse inevitável, mesmo que sua mente estivesse em outro lugar.

Aliás, falando em carros, a relação de Yoko com o transporte público usbeque também é bastante eficiente tanto para expor seu deslocamento – a personagem constantemente apresenta dificuldades de se comunicar com os outros passageiros e até mesmo para utilizar o serviço –, como também para criar um interessante simbolismo acerca da relação de Yoko com o movimento. O veículo, obviamente atrelado sempre a mudanças e viagens, é sempre um ambiente hostil para uma personagem que parece temer qualquer mudança em sua vida.

Ao fim, é plenamente compreensível que a maior conexão que Yoko seja capaz de fazer seja com os animais. A cabra que a personagem insiste em comprar, por exemplo, não só é o único ser vivo que com ela interage sem nenhum diálogo falado, como também o único ser aprisionado, vivendo em uma cerca. A identificação é imediata. Ao libertar a cabra, Yoko ouve de uma usbeque que deixar o animal solto na natureza pode levar à sua morte, já que cães selvagens caçarão o animal. No fim das contas, a situação resume perfeitamente a condição pela qual Yoko precisa passar para entender seu lugar no mundo: a liberdade vem com um preço, que é a falta de estabilidade. Para dar novos passos em sua vida, Yoko precisa, antes de tudo, entender que mudar é arriscar e se expor. Precisa entender que a beleza do mar não está somente nas ondas, mas também no perigo que elas trazem.

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