Ajude este site a continuar gerando conteúdo de qualidade. Desative o AdBlock

O Lodo

O Lodo

Noventa e seis minutos gritando “faça terapia”

Matheus Fiore - 26 de janeiro de 2020

Manfredo é um funcionário de um escritório e com seus 50 anos de idade, lida com uma repentina depressão. O sujeito parece ter uma vida estabilizada. No lado pessoal, não possui filhos ou esposa, mas possui uma namorada que encontra de vez em quando. Tudo parece estar indo de vento em popa, já que, além de tudo que foi mencionado, Manfredo também é uma pessoa bastante saudável. Mesmo assim, o personagem parece estar infeliz, deprimido (ou depressivo). “O Lodo”, de Helvécio Ratton, nos leva em uma jornada para compreender o que aflige esse personagem.

“O Lodo” não tarda para se revelar um drama inspirado na psicanálise. A ida de Manfredo a um psicanalista sugere que, provavelmente, a depressão do personagem vem de traumas da infância. A partir disso, Helvécio nos leva a acompanhar a rotina do protagonista, que passa a ser perseguido pelo terapeuta e por sua secretária. O maior problema de “O Lodo” é que o filme tem como principais alicerces dramáticos, eventos que, dentro do filme, possuem pouco ou nenhum refinamento cinematográfico. Ao fim, a sensação é de que a cena final está repetindo o que fora sugerido no primeiro ato, sem que nada seja acrescentado durante o caminho.

Há, por exemplo, uma sugestão de Manfredo possui desejo por sua irmã, e isso talvez seja o ponto de partida para sua condição depressiva. O problema é que isso jamais é explorado pelo filme, a não ser por flashbacks soltos que sugerem que o personagem espiava sua irmã enquanto ela tomava banho. Mesmo que se proponha a fazer um estudo da sexualidade, da repressão e do tabu, Helvécio só consegue mesmo tirar humor das situações, e quase nunca um humor calcado nas questões sexuais. O que diverte, na verdade, é apenas a ira do personagem diante de seus problemas profissionais, fracassos, erros e a perseguição sofrida.

“Lodo” é um filme que beira o desastre por dois motivos. O primeiro é justamente essa dificuldade para trabalhar a sexualidade e a total ausência de qualquer articulação sobre o tema – seja por imagens, seja pelo texto, nada aqui dá alguma profundidade ou cria uma conexão que justifique o passado assombrar tanto o protagonista. O segundo é pelo fato de o filme jamais perceber que seu potencial reside muito longe de questões freudianas: está no acompanhamento da rotina e no humor relacionado ao desgaste trazido por ela.

Por ser um típico homem branco de classe média com emprego estável em um escritório, Manfredo é refém de sua rotina, algo que, inclusive, poderia muito bem ser explorado para desenvolver uma análise sobre como essa vida de repetições acinzenta a existência no mundo moderno. Essa relação entre o a vida profissional e a pessoal e como o estresse do trabalho o consome, mesmo que superficial, acaba sendo muito mais trabalhada do que o desejo reprimido.

Outro problema é na definição do olhar do diretor para a história que está contando. Enquanto Manfredo e a maioria dos personagens se comportam de forma ordinária, o psicanalista e sua assistente tomam atitudes tão deslocadas da realidade que rompem com a verossimilhança do filme. Mesmo dentro do universo do longa, as atitudes retratadas não soam naturais, não soam verdadeiras, e parecem afastar aqueles personagens da narrativa, criando uma constante dúvida sobre o que de fato está acontecendo e qual o tom que Ratton pretende passar em tais momentos.

Em sua apresentação durante a Mostra de Cinema de Tiradentes, Helvécio Ratton afirmou que escolheu adaptar o conto de Murilo Rubião por, entre outros motivos, ver muito de Kafka nele. Em outras entrevistas, o diretor afirmou pretender estudar a essência da alma humana. As pretensões não poderiam ser mais distantes do que a obra alcança, já que a única coisa que funciona em “O Lodo” é o humor situacional cotidiano, enquanto o estudo da essência de seu protagonista é sempre sabotado pela falta de um olhar mais filosófico e denso para essa história. “O Lodo” é uma obra que parte de uma premissa interessante, mas que acaba sendo totalmente esterilizado por não ter ideia de onde quer chegar e nem qual caminho deve trilhar. Ao fim, a única ideia que fica já estava implícita nos primeiros minutos de filme: procure um terapeuta.


Texto originalmente publicado como parte da cobertura do Plano Aberto para a 23ª Mostra de Cinema de Tiradentes. Para conferir toda a nossa cobertura, clique aqui.

Topo ▲