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O Menino Que Matou Meus Pais + A Menina Que Matou Os Pais

O Menino Que Matou Meus Pais + A Menina Que Matou Os Pais

Filmes sobre o caso von Richthofen buscam público acostumado a conteúdo estrangeiro

Igor Nolasco - 29 de setembro de 2021

“Venda casada”. Era essa a expressão que por vezes se via sendo utilizada, nas redes sociais, na ocasião do lançamento de “O Menino Que Matou Meus Pais” e “A Menina Que Matou Os Pais” pelas plataformas digitais, na sexta-feira, 24 de setembro. Não dá pra dizer que é uma maneira imprecisa de designar, digamos, o “modelo de negócios” empregado pelo diretor Maurício Eça em sua empreitada de realizar dois filmes diferentes e complementares sobre a tragédia que arrebatou o país no início dos anos 2000 – o caso von Richthofen. Essencialmente, o que está sendo feito é isso mesmo; a proposta é essa.

Desde que a campanha de divulgação dos longas se deflagrou, ainda no início de 2020, havia quem já se mostrasse cético quanto à possibilidade de pagar por dois ingressos para ver lados distintos de uma mesma história. Com o cancelamento da estreia em circuito naquele ano, à época do fechamento das salas de cinema em decorrência da pandemia de COVID-19, os longas de Eça foram objeto sucessivos adiamentos por períodos indeterminados. Após mais de um ano com pouca ou nenhuma notícia acerca dos filmes, fora a participação de sua atriz principal na edição de 2021 do Big Brother Brasil, as duas produções foram disponibilizadas em streaming em um mesmo dia, sem necessidade de pagamento de taxas adicionais por parte do espectador. Nesse movimento, talvez o “modelo de negócios” tenha parecido menos evidente ao público, que agora pode conferir os dois lados da moeda sem pagar ingressos individuais para cada um deles. Mas o espírito da “venda casada” ainda continua presente em ambos os filmes.

Supostamente, a ordem correta para se assistir às obras é começar por “O Menino” e terminar por “A Menina”, mas o sentido oposto não parece excludente para um entendimento do que Eça pretende mostrar, até porque as duas versões são, de certa forma, inconclusivas: a que foca no depoimento de Daniel Cravinhos termina com ele dizendo estar ciente de que a história contada por Suzane von Richthofen é radicalmente diferente da sua, e a que parte do testemunho de Suzane se ampara no mesmo argumento, com os lados invertidos. Isso não é necessariamente um defeito, mas sim uma condição à qual o cineasta submete sua(s) obra(s) – cada vez mais soa redundante utilizar o plural, visto que, no fundo, é uma coisa só, uma serpente que engole a própria cauda infinitamente, como uma ouroboros.

Partindo de uma onda – que não é exatamente recente, mas certamente encontra expoentes significativos nos últimos anos – de produções documentais ou ficcionais que se propõem a repassar casos criminais marcantes e chocantes, Eça mostra-se empenhado em seguir à risca a cartilha dos filmes ou seriados de ficção norte-americanos e aplicá-la ao contexto brasileiro. Para uma parcela do público, isso pode ser extremamente atrativo, uma vez que, ao menos visualmente, os longas parecem bem à par com o que vem sendo produzido no estrangeiro para plataformas digitais. No entanto, ao seguir por esse caminho, ele se priva de construir uma atmosfera legitimamente identificável, a começar pela ambientação: sua São Paulo é inexistente, uma cidade qualquer que mal se vê, meramente cenário para o desenrolar da ação, sem qualquer designação geográfica ou social.

Alguns cineastas já obtiveram resultados interessantes ao construírem São Paulo, cidade que se vê como cosmopolita, ainda que terceiromundista, enquanto um ambiente extremamente estilizado à moda dos quadrinhos ou do cinema hollywoodiano: Chico Botelho em “Cidade Oculta“, Wilson Barros em “Anjos da Noite”, Guilherme de Almeida Prado em “A Dama do Cine Xangai“. Aqui, em contrapartida, São Paulo parece apenas um não-lugar, uma não-cidade. O mesmo ocorre com a “praia” que os von Richthofen e Daniel Cravinhos visitam, ou mesmo a “cidade de Campinas” na qual Daniel participa de um campeonato de aeromodelismo. A única referência temos da praia e de Campinas é que são mais ou menos distantes da cidade na qual a parte majoritária da ação se passa, mas todas as locações são igualmente insípidas e genéricas, e não evocam em nada qualquer senso de brasilidade.

O mais próximo que os filmes de Eça chegam de fazê-lo é na concepção da família Cravinhos como sendo tipicamente suburbana, para contrastar com os aristocráticos von Richthofen. No entanto, mesmo isso convence pouco: em momento algum a família parece verdadeiramente pobre, ainda que os dois filmes tentem vender tal imagem, amplificada pelos julgamentos desproporcionais do patriarca dos Richthofen. Moram numa casa surpreendentemente espaçosa para os padrões de uma cidade como São Paulo. Mas, novamente, talvez o erro seja ter esse tipo de dado em mente, uma vez que as produções não fazem esforço algum na caracterização da São Paulo cenográfica enquanto algo remotamente próximo da São Paulo factual – o momento em que isso chega mais perto de ocorrer é quando o nome “São Paulo” aparece, ao fundo, enquanto o casal desce pelas escadas rolantes de um shopping center. Nessa situação, é possível que Eça tenha inconscientemente acertado: nada mais paulistano do que isso.

Nas duas versões do crime, a construção das situações que desaguam no mesmo soam por demais simplórias e estereotípicas, o que talvez possa ser justificado quando cada longa se ampara em um relato oral para a construção de sua narrativa, fazendo com que certos aspectos assumidamente cartunescos possam ser compreendidos como decorrentes dessas visões bem particulares: na versão de Suzane, Daniel é relaxado, displicente e a extorque com frequência; Daniel, por sua vez, caracteriza Suzane como excessivamente explosiva e mesmo rude. No entanto, em ambas prevalece um padrão que dificilmente pode ser atribuído a essa mesma estilização autoconsciente da caracterização dos personagens. Por exemplo, a rápida escalada, já notada e discutida por alguns espectadores, da progressão narrativa de Suzane: começa a fumar maconha, reprova no vestibular e, subitamente, já está arquitetando o assassinato de seus pais (ou assistindo passivamente a este, dependendo da versão).

Somando pouco menos de três horas de minutagem, os dois filmes de Maurício Eça geram muito pano pra manga para discussão. A depender do sucesso que lograrem, podem ser a fagulha do ressurgimento do subgênero “crimes reais” no cinema brasileiro – que apesar de andar meio apagado, sempre foi popular por aqui. Desde os primórdios do cinema silencioso se veem produções pioneiras como “O Crime da Mala” ou “Os Estranguladores“, ambas de 1908. Já nos anos 1960 e 1970, chegavam em cartaz títulos como “Assalto ao Trem Pagador“, “Mineirinho Vivo ou Morto” ou “Lúcio Flávio, o Passageiro da Agonia“. Não faltam exemplos recentes, no pós-Retomada, como “Assalto ao Banco Central“. Talvez o que o espectador brasileiro buscasse, em sua memória cinematográfica recente, fosse uma história trágica e amplamente conhecida como a dos von Richthofen. Há muito o público por aqui se ampara, para esse tipo de narrativa, em produções norte-americanas. Para o bem ou para o mal, o Brasil agora tem um título que preenche essa lacuna em sua filmografia comercial recente.

A procura por esse público que demonstra interesse por filmes e seriados estadunidenses que se encaixem no subgênero do true crime pode ser vista como a maior força e a maior fraqueza de “O Menino Que Matou Meus Pais” e “A Menina Que Matou Os Pais“. A maior força porque, apostando em um alinhamento de texto, estética, linguagem e divulgação com o modelo estrangeiro, Eça inevitavelmente acaba chegando em parte de seu público-alvo. A maior fraqueza porque, ao fazê-lo, conscientemente estripa o conteúdo fílmico do que nele poderia haver de mais autêntico. Os dois longas são como a São Paulo cenográfica que lhes serve de palco: por vezes, parecem ecos vagos de algo que poderia ser melhor trabalhado, de maneira mais genuína, mais palpável com mais interesse. No entanto, frisemos: sem dúvida, encontrará (como já está encontrando) seu público, e pode gerar precedente para mais obras no mesmo molde.

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