Ajude este site a continuar gerando conteúdo de qualidade. Desative o AdBlock

O Som do Silêncio

O Som do Silêncio

Encontro com a quietude

Wallace Andrioli - 14 de dezembro de 2020

O texto a seguir contém spoilers de “O Som do Silêncio”

Em Mank (2020), de David Fincher, há uma fala de Herman J. Mankiewicz (Gary Oldman) sobre as narrativas cinematográficas serem sempre circulares, pois necessariamente levam seus personagens de volta ao ponto de partida, amarrando um arco de aprendizagem/evolução ou estagnação. Uma coisa interessante em O Som do Silêncio é como o filme não obedece exatamente a essa lógica: a história acompanha o protagonista Ruben (Riz Ahmed) numa jornada que segue sempre adiante, conduzindo-o a novos lugares e condições e frustrando a única tentativa explícita de retorno.

Ruben é o baterista de um duo de heavy metal, ex-usuário de drogas, que repentinamente perde a audição. A primeira meia hora de filme é dedicada a essa descoberta em meio à relação do protagonista com sua namorada e parceira musical, Lou (Olivia Cooke). O diretor e co-roteirista Darius Marder indica estar interessado nos desdobramentos da crise que se instala entre os dois personagens: como seguir tocando? Como o inevitável fim da parceria afetará o relacionamento amoroso? Mas, numa virada até um pouco brusca, Marder simplesmente separa o casal e coloca o protagonista numa clínica para surdos, isolado do mundo, espaço que lhe é bastante desafiador. No terceiro ato, enfim, há a tentativa fracassada de retorno a um estado anterior, quando Ruben reencontra Lou – mas não mais na estrada ou em shows, e sim em Paris, vivendo com o pai (Mathieu Amalric).

O Ruben da segunda parte, na clínica, não é como o da primeira (que, aliás, já era diferente de uma versão do personagem apenas mencionada, relativa ao período do vício em drogas). O que vai a Paris é um terceiro Ruben dentro do filme e o da cena final, pós-separação definitiva de Lou, um quarto. Não há volta possível, a vida é andar para frente, mesmo a revelia da vontade das pessoas que eventualmente almejam recuperar um passado perdido. No caso de O Som do Silêncio, a inocuidade dessa busca é especialmente comovente não tanto na separação do casal, mas na busca do protagonista por retomar a audição. A cirurgia longamente sonhada e o resultado insatisfatório, ápice do drama do filme, concentram essa lógica, que rege a narrativa, da impossibilidade de retorno a um estado das coisas anterior.

Num filme em que a mudança é a regra, Marder constrói sua unidade dramática a partir de um realismo sóbrio que é uma faca de dois gumes. Por um lado, O Som do Silêncio tem uma aparência excessivamente comum, de um drama a princípio convencional que poderia ser dirigido por qualquer profissional. Por outro, evita maneirismos e uma hiperdramatização que talvez fosse esperada de um estreante querendo mostrar serviço, forma de potencializar ao máximo as sensações de um protagonista em transformação física.

Essa discrição adotada por Marder acaba reverberando na atuação de Ahmed. Tendo em mãos um personagem portador de uma inquietude por vezes desesperadora, o ator resiste à tentação do overacting e, em perfeita sintonia com o estilo do filme, se mantém sempre um tom abaixo. Ahmed encarna Ruben como uma figura que, mesmo com uma trajetória de experiências extremas, permanece meio assustada e perdida no mundo, especialmente diante da novidade acachapante da surdez repentina e da necessária adaptação ao silêncio.

Darius Marder, no fim das contas, tem esse mérito de fazer um filme cada vez mais quieto sobre um encontro gradual com a quietude. O Som do Silêncio arranca beleza do todo coeso, simples e discreto, alheio a histrionismos e maneirismos, e não de momentos isolados de explosão emocional, que busquem chamar atenção para si mesmos como suprassumo da dramaturgia contemporânea.

Topo ▲