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Okja

Okja

Matheus Fiore - 28 de junho de 2017

A brusca mudança de tom do primeiro para o terceiro ato de Okja certamente não é um erro do talentoso diretor sul-coreano Bong Joon-ho. Também não é algo gratuito para enaltecer o domínio estético-narrativo do cineasta sobre sua obra. Muito além disso, é algo planejado desde o roteiro. Este polêmico novo filme original da Netflix constrói em seus primeiros dois terços uma atmosfera cômica, dócil e lúdica para, com maestria, nos apunhalar no peito ao subverter tais elementos em sua parte final. A história acompanha Mija, uma criança sul-coreana que vive nas montanhas com seu avô e Okja, sua “super-porca” de estimação. Uma grande corporação pretende levar o animal para Nova Iorque, então Mija parte em uma jornada para trazer seu “pet” de volta para casa.

Okja funciona como uma grande sátira, mas há vários pequenos momentos que tornam a obra uma verdadeira exposição de críticas. Há, por exemplo, na cena de abertura, uma cena de Lucy Mirando (Tilda Swinton, interpretando o rosto da Mirando Corporation) apresentando o projeto “super-porcos” para a imprensa, enquanto de um andar superior, orquestra o evento o engravatado vivido por Giancarlo Esposito, que acompanha com as mãos as risadas da audiência e repete com os lábios o monólogo de Lucy.  O interessante é que momentos como esse surgem ao longo do filme mas nunca soam deslocados e sempre acrescentam à trama. Uma passagem que merece destaque é quando a equipe da Frente pela Liberdade Animal conhece Mija. Ali, o longa aproveita para tecer também uma sutil crítica aos movimentos veganos, debochando de como um dos personagens se recusa a comer qualquer alimento oriundo da natureza(!). Mesmo não se posicionando contra os defensores da vida animal, a obra acerta ao mostrar falhas no lado “certo” e evitar que sua mensagem soe maniqueísta e panfletária.

Mas nem só de curtos momentos irônicos vive Okja. O filme tem em suas mudanças de tom seu ponto alto. Como dito no primeiro parágrafo, os primeiros atos do filme criam uma atmosfera lúdica e sublime, muito graças às ambientações. Tendo uma parte de sua duração ambientada nas montanhas sul-coreanas, a obra ganha uma aura natural e harmônica forte, beneficiada pelos planos abertos que retratam o animal interagindo com Mija e com a natureza, perfeitamente adequado em seu habitat natural. A forma de fotografar Okja, porém, muda ao longo da trama. Quando levado à cidade, Okja passa a ser fotografada com ângulos mais fechados, que ajudam a estabelecer a sensação de claustrofobia que é imposta ao animal quando este é retirado de seu lar. Ajuda também o uso de sombras e luzes artificiais, enquanto na mata uma luz natural prevalecia e proporcionava melhor “encaixe” do ser nos cenários.

As atuações também são peça chave nas nuances de tom. As duas principais são as de Tilda Swinton e Jake Gyllenhaal como Lucy Mirando e Dr. Johnny Wilcox. Com abordagens extremamente caricatas (que fortalecem o tom satírico do longa), encontram nos maneirismos a ferramenta para estabelecer o humor do filme. Aos poucos, porém, são consumidos por suas inseguranças e vemos os exageros cômicos se tornarem picos emocionais melancólicos. No meio de tantos personagens descomedidos, há a protagonista Mija, interpretada pela jovem Ahn Seo-hyun, que por meio de sua atuação simples e humana, destoa do restante do elenco e faz o elo entre espectador e filme, nos permitindo nos identificarmos com ela por ser a única realmente “humana” de Okja.

O humor se faz presente na primeira metade e é imprescindível para a virada do fim do filme. Inicialmente, há gags que tornam determinadas passagens verdadeiras comédias. O longa mantém apenas sua protagonista, Mija, alheia às piadas, fazendo de todo o resto do elenco uma engrenagem para a manutenção do tom cômico. Conforme a trama adquire tons mais trágicos, porém, as piadas vão sumindo, e a obra abraça uma atmosfera sombria que impacta por pegar seu público despreparado. Se nos primeiros 90 minutos um festival de piadas deixa o espectador confortável e sorridente, os 30 minutos seguintes estão lá justamente para nos incomodar e nos lembrar de que, no fim das contas, Okja vai além do humor e está lá para passar uma mensagem. A mudança de tom é perceptível até na trilha, que passa de temas delicados com dedilhados para as cenas mais básicas e outros com metais para acompanhar o humor. Já no fim do filme, Okja passa a fazer uso de um denso conjunto de vozes soprano que imprime melancolia à imagem.

Não é à toa que a fazenda onde os “super-porcos” são mantidos se assemelha a um campo de concentração alemão. Também não é acidental a manutenção de baixa luminosidade e cores frias como o azul e o cinza no clímax. Ao romper com todos os laços estéticos estabelecidos ao longo dos 90 minutos anteriores, o filme se torna sombrio e cutuca uma ferida da nossa sociedade. Muitas vezes escolhemos fechar os olhos para a “indústria da morte” das corporações alimentícias, que tratam seu gado como objetos inanimados, e Okja sabe nos fazer pensar na questão sem apelos ou panfletagem. E tudo isso só funciona porque desde as primeiras aparições do animal, Joon-ho se esforça para nos fazer crer em sua existência. Desde sua aparência rústica e pouco apelativa (o natural para criar empatia seria utilizar grandes e expressivos olhos, o contrário do que vemos) até seu comportamento (a dedicação para dar vida à Okja é tanta que há cenas até do animal defecando).

Merecedor de todo o buzz criado desde seu polêmico lançamento no Festival de Cannes, Okja trata de temas fortes como poucos filmes conseguem: com uma condução visual satírica, irônica e expositiva, acompanhada de um roteiro contido e inteligente – com exceção de um pequeno trecho da conclusão, quando um elemento “dourado” inserido lá no começo da trama surge de maneira abrupta e muito mecânica para resolver conflitos. Bong Joon-ho tem aqui uma grande adição à sua carreira, e vai se tornando mais um dos grandes ícones do atual cinema sul-coreano, que para muitos (incluindo o autor desta crítica) é um dos mais ricos da atualidade. Em um péssimo ano da Netflix (Máquina de Guerra, Sonhos Lúcidos e Slam são apenas alguns dos exemplos do baixo nível dos recentes lançamentos do serviço de streaming), temos não só um alento, mas uma das grandes obras da temporada.

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