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Os Imperdoáveis (1992)

Os Imperdoáveis (1992)

As zonas cinzentas do western

Wallace Andrioli - 4 de fevereiro de 2019

“Os Imperdoáveis” (1992) é um filme sobre desconstrução de mitos. Esse tema aparece, de forma até reiterada, em sua diegese. Logo no início, ao procurar William Munny (Clint Eastwood), lendário assassino, para ser seu parceiro na execução de dois sujeitos que cortaram o rosto de uma prostituta, Schofield Kid (Jaimz Woolvett) se decepciona com o que encontra: em idade já avançada, Munny se tornou um pequeno fazendeiro, criador de porcos. Pouco depois, entram em cena os personagens English Bob (Richard Harris), outro pistoleiro conhecido, e seu biógrafo oficial W.W. Beauchamp (Saul Rubinek). No entanto, humilhado e preso pelo xerife Little Bill (Gene Hackman), Bob tem revelada a dimensão farsesca das histórias que, até ali, compunham sua biografia. De exímio atirador capaz de enfrentar rivais perigosos, ele passa a ser apresentado a Beauchamp como um bêbado covarde que executa inimigos já desarmados.

Essa desconstrução ocorre ainda em diálogo com o campo extra-fílmico. Diretor e protagonista, Eastwood tem uma imagem fortemente associada ao western. Em duas de suas emblemáticas visitas ao gênero, “O Estranho Sem Nome” (1973) e “O Cavaleiro Solitário” (1985), os personagens que interpreta retornam triunfantes ao mesmo nada de onde vieram, após cumprirem sua missão. “Os Imperdoáveis” também termina com Munny cavalgando rumo ao desconhecido, mas não há triunfo possível. Novamente dominado pelo vício alcoólico e por um implacável desejo de matar, ele sai de cena ameaçando os moradores de Big Whisky: “Quem aparecer na minha frente vai morrer! Qualquer desgraçado que atirar em mim, não mato só ele, mato a mulher dele, todos seus amigos e queimo sua casa! É melhor ninguém atirar! É melhor enterrarem o Ned direito. É melhor não fazerem nada com as prostitutas! Senão eu volto e mato todos vocês, desgraçados.” Cai por terra a típica encarnação do cowboy valoroso mesmo quando brutal.

William Munny, protagonista de “Os Imperdoáveis”

Vale dedicar maior atenção à comparação entre “Os Imperdoáveis” e “O Estranho Sem Nome”. Nesse último, a figura misteriosa interpretada por Eastwood age com particular crueldade sobre os habitantes da pequena cidade de Lago, impondo-lhes tarefas, estuprando mulheres, reconfigurando as posições sociais da cidade, invadindo propriedades. No entanto, tais ações encontram justificativa dentro do universo do filme, já que, à exceção de Sarah (Verna Bloom) e Mordecai (Billy Curtis), todos os demais personagens são desprezíveis, responsáveis, em alguma medida, pelo assassinato do xerife Jim Duncan (Buddy van Horn).

As coisas não são tão simples em Big Whisky. As razões de Little Bill são, no limite, justas: ele quer “civilizar” a cidade, substituir a violência das armas pelo rigor da lei. Mas as das prostitutas, marginalizadas nessa civilização e sedentas por vingança contra os homens que mutilaram uma delas, também são. O que move Munny, Ned (Morgan Freeman) e Schofield Kid, por outro lado, mais do que os mil dólares da recompensa oferecida, é uma relação direta com a dimensão mítica do western. Os dois primeiros, outrora criminosos famosos e temidos, tentam, no crepúsculo de suas vidas, retornar de alguma forma a esse passado; o terceiro sonha em se tornar parte do mito e constrói para si uma imagem de pistoleiro temível, que, todavia, logo também é desconstruída (além de enxergar muito pouco, Kid é na verdade um neófito no negócio de matar). Os “heróis” de “Os Imperdoáveis”, portanto, têm motivos mais egoístas e anacrônicos para suas ações que o “vilão”.

Mas talvez esse anacronismo seja apenas aparente. Munny e Ned se sentem ultrapassados no presente, já que velhos e agora adeptos de um estilo de vida distante da matança do passado. Mas o mundo ao seu redor segue violento, ainda há espaço nele para a crueldade que praticavam nos tempos de juventude. Ao refletir sobre isso, Eastwood expõe as entranhas da sociedade estadunidense, fortemente dependente de uma lógica violenta de resolução de conflitos. Não à toa, nos dois momentos mais brutais de “Os Imperdoáveis”, a surra em English Bob e o massacre no saloon, os agentes dessa brutalidade, respectivamente Little Bill e Munny, são enquadrados por Eastwood em contra-plongée, com uma bandeira dos Estados Unidos tremulando sobre suas cabeças.

“Os Imperdoáveis” se aproxima assim do clássico “O Homem que Matou o Facínora” (1962), em que John Ford investiga as origens das instituições políticas dos Estados Unidos, revelando a ocultação, pela superfície barulhenta da democracia, de suas raízes violentas. Mas Eastwood vai além de Ford. Enquanto emerge de “O Homem que Matou o Facínora” o entendimento, misto de cinismo e conformismo, da necessidade da mentira na sustentação de um regime que, mesmo espalhafatoso, produz integração comunitária e liberdade, nada de benéfico resulta das relações estabelecidas entre os personagens de “Os Imperdoáveis”. O recurso à violência no filme de Eastwood deixa marcas indeléveis neles – “Matar um homem é uma coisa infernal. Você tira tudo que ele tem e tudo que poderia ter um dia”, diz Munny a um Schofield Kid para sempre traumatizado, após cometer seu primeiro assassinato –, disparando um ciclo que parece impossível encerrar.

Tem-se aqui um típico quadro eastwoodiano. Esse mesmo ciclo assombra o trio de protagonistas (Sean Penn, Tim Robbins e Kevin Bacon) de “Sobre Meninos e Lobos” (2003) e o marine Chris Kyle (Bradley Cooper), de “Sniper Americano” (2014). Mas o filme de Eastwood que mais guarda semelhanças com “Os Imperdoáveis” (além, claro, de seus westerns anteriores) é “Gran Torino” (2008). Ambos reencontram personagens muito fortemente ligados à imagem do ator/diretor (o pistoleiro implacável e o homem solitário racista e ranzinza, que resolve por conta própria seus problemas), mas agora na velhice, sofrendo com a viuvez recente e a sensação de inadequação num mundo em transformação.

Walt Kowalski, protagonista de “Gran Torino”

E “Os Imperdoáveis” e “Gran Torino” se complementam na abordagem das consequências da violência sobre quem faz uso dela. Enquanto o primeiro olha para o passado com desencanto, tomando por inevitável, na narrativa, o recurso às armas como forma de resolução de conflitos (é essa, afinal, a história dos Estados Unidos e a natureza da experiência do western, aqui revisitada e desmitificada), o segundo opta por uma conclusão diferente, sacrificando essa velha lógica (e, junto a ela, seu representante direto) perante a lei e apostando, com otimismo, num futuro de miscigenação e tolerância. Isso em 2008, em meio à ascensão de Barack Obama ao poder, algo talvez surpreendente vindo de alguém repetidamente reduzido ao estereótipo de “cineasta republicano”. Mas o cinema de Eastwood sempre foi bem mais complexo que esse tipo de simplificação.

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