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Os Primeiros Soldados

Os Primeiros Soldados

Celebração da vida e da luta diante da morte

Wallace Andrioli - 15 de dezembro de 2021

O Brasil vivia tempos de relativa euforia na primeira metade da década de 1980. A abertura política corria solta, apesar de algumas ameaças e retrocessos, a campanha das Diretas Já levava milhares às ruas, num intenso reencontro com a mobilização política após anos de refluxo decorrente da ditadura militar, o rock nacional exprimia anseios e o estilo de uma nova geração. Mas era também o momento inicial da epidemia de HIV, que, ao longo dos anos e décadas seguintes, deixaria milhares de mortos no país.

O cinema nacional da época e aquele produzido posteriormente tratou de forma recorrente desses temas políticos e culturais, mas raramente se dedicou a mostrar os impactos da AIDS sobre brasileiros e brasileiras dos anos 1980. Os Primeiros Soldados, quarto longa-metragem de Rodrigo de Oliveira, preenche muito bem essa lacuna, ao contar a história de um grupo de personagens na Vitória de 1983-1984 convivendo com a disseminação do vírus e suas consequências trágicas.

O principal desafio do diretor era encontrar um tom adequado para esse enredo, que homenageasse a força de Suzano (Johnny Massaro), Rose (Renata Carvalho) e Humberto (Vítor Camilo), epítome de uma geração, diante da morte iminente e não se restringisse ao registro lúgubre da degradação física dos três. O caminho seguido gera um belo resultado: Oliveira divide a narrativa em duas partes, uma primeira em que os personagens são apresentados celebrando a vida e a abertura de novos horizontes (é réveillon e a ditadura militar se aproxima do fim) e uma segunda, construída quase toda a partir de um vídeo diário que acompanha o avanço da doença especialmente sobre Suzano.

Esse recurso metalinguístico transforma Os Primeiros Soldados num filme também sobre a criação artística, ainda mais que as imagens produzidas pelos três personagens têm uma ludicidade própria do ato de filmar, não se resumem a relatórios médicos. A presença inevitável da morte como matéria-prima para a arte. É bem sintomática, nesse sentido, a escolha pela analogia com a guerra, tanto no título quanto no filme que Suzano, Rose e Humberto brincam de fazer.

Não só pelo sentido mais imediato da equivalência com a luta pela vida contra um inimigo implacável, mas por remeter ao ato cinematográfico em si, na antiguidade do gênero filme de guerra, na vinculação histórica entre câmeras e tecnologia bélica, nos tantos clássicos que, ao longo dos séculos XX e XXI, tentaram expressar imageticamente as experiências extremas do front e, com isso, povoaram o imaginário de diferentes gerações de espectadores (inclusive de Suzano). Para o protagonista de Os Primeiros Soldados, como para Samuel Fuller e Rodrigo de Oliveira (que aqui se posiciona abertamente nas disputas de memória sobre o passado recente do país, em meio a um contexto de enormes retrocessos para a população LGBTQIA+), o filme é um campo de batalha.

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