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Panorama

Panorama

A expressão e a memória humana resistem aos processos de gentrificação da cidade.

Michel Gutwilen - 27 de janeiro de 2022

Pensando em um contexto comparativo dentro da própria Mostra Aurora, é possível traçar, como ponto de partida, paralelos e diferenciações entre o já criticado A Colônia e Panorama, de Alexandre Wahrhaftig. Ambos são filmes que possuem como “protagonista” um bairro periférico (Colônia, no Ceará, e a favela Jardim Panorama, em São Paulo), com suas narrativas existindo como uma forma de denúncia frente ao abandono progressivo sofrido por esses lugares e seus habitantes, em um processo que vai se acumulando historicamente. Claro que aqui se entra no campo subjetivo, mas no caso em questão, entre ambos, Panorama me parece uma obra mais madura e bem resolvida dentro do tratamento desse tema.

Se em A Colônia o principal modo de enxergar a sua comunidade era como um organismo coletivo, personificada em seus habitantes, pode-se dizer que em Panorama  é um filme que existe mais equilibrado entre o elemento humano e um olhar para o espacial, o geopolítico e também uma arquitetura urbana. Por isso, não é à toa que há um plano que se repete durante o filme, quando a câmera se volta para os moradores da favela Jardim Panorama desenhando uma visão imaginária do bairro Jardim Panorama em uma folha de papel. Apontando para o futuro, uma moradora antiga desenha a planta da casa hipotética que ela queria ter, neste uso da folha como possibilitadora de um imaginário que não pode se concretizar no mundo real. Enquanto isso, um morador, para explicar como era o bairro no passado, desenha um mapa de como era a região, provavelmente devido a ausência de registro documental daquele lugar, mas também de modo a privilegiar uma visão afetiva e pessoal daquele espaço enxergado internamente, elemento mais valioso ao filme do que uma imagem fria em 2D de um Google Earth, por exemplo.

Para quem já pode ver o curta “E”, de coautoria de Alexandre e premiado na Mostra Tiradentes em 2014, não é novidade notar este interesse do diretor pelos processos de especulação e gentrificação da metrópole (São Paulo, importante localizar). Se o seu curta é uma distopia sem humanos, apenas com carros e a cidade vista como um grande projeto de cemitério pintado em concreto, Panorama é como um spin off no passado deste mesmo universo, se passando no último ponto de resistência humano daquela civilização fadada a se despersonificar, observando o apagamento da mesma. Mirando seu olhar majoritariamente para a favela de Jardim Panorama, nos poucos momentos em que o filme decide olhar para fora dela, ou seja, para os espaços burgueses representados através da arquitetura, Alexandre decide olhar com a mesma impessoalidade de “E”. Fora da favela, só vemos prédios distantes, asfalto e rodovias que não há espaço para pedestres andarem (a cidade não é feita para humanos, apenas para carros-máquinas). 

Progressivamente ao andamento do filme, cada vez mais o diretor vai encaixando nas imagens a presença dos prédios da cidade, sempre em segundo plano com relação a proximidade de Jardim Panorama, como se cada vez mais essa arquitetura (política) fosse se violentando para dentro do quadro, dando um jeito de aparecer, como uma presença (presente) incontornável. No mesmo sentido, as conversas dos moradores também são constantemente invadidas por um ruído violento vindo dos ruídos de um helicóptero passando. 

Portanto, percebe-se o padrão desta opressão — vertical e horizontal, visual e sonora, no plano e no extraplano — sempre em forma despersonificada, de uma ameaça onipresente aos moradores do bairro, o que de certa forma faz com que aquela vida se torne de certat maneira um tipo de prisão, também. São muitos os planos que Wahrhaftig busca provocar esse simbolismo, como quando, nos minutos finais, ele observa uma partida de futebol com a câmera posicionada atrás das grades do campo, assim como nos momentos em que ele brinca com uma montagem de diferentes janelas que estão sempre apontando para uma vista de prédios. 

É claro que este tipo de tratamento do sistema como um vilão impessoal sem face pode cair em um olhar politicamente simplório (é uma das minhas maiores críticas no texto do brasileiro 7 Prisioneiros), mas Alexandre está menos interessado em olhar para diagnósticos e prognósticos, buscando mais filmar o processo de apagamento dessa comunidade. Logo, em Panorama, a cidade como estrutura impessoal é justamente um elemento contrastante escolhido pelo diretor para contrastar com o elemento humano na comunidade de Jardim Panorama, que é o seu foco. No fim, a vista daqueles prédios ao fundo só funciona como uma ameaça porque vemos que o que está em extinção são valores, histórias e culturas que não podem ser comprados. 

É neste sentido que a parte mais direta do filme, com entrevistas e relatos, cumpre seu papel. De uso de memórias do passado pela oralidade, ao uso de imagem de arquivo e uma atenção para a rima e a música, a identidade de Vila Panorama vai se construindo através do elemento humano, ao mesmo tempo que a espacialidade e a arquitetura vão mostrando o quão perigoso pode ser ser o futuro (que de certo modo também é presente e existe desde o passado naquele lugar, em um processo de expulsão daqueles moradores que tende a ficar cada vez pior). Em um momento perto do fim, é marcante quando um dos moradores diz que “a gente não existe, mas estamos aqui”, ao se referir a quem diz que não há nada naquele lugar, apesar de, objetivamente, eles aparecerem em espaços como no Google Maps ou no GPS. Em Panorama, o Cinema cumpre sua função em conseguir entrar naquilo que o afastamento de um mecanismo tecnológico como os citados jamais conseguiria.


Acompanhe a cobertura completa aqui.

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