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Papillon

Papillon

Matheus Fiore - 30 de setembro de 2018

A história de Henri Charrière, contada em sua autobiografia, já foi adaptada por Franklin J. Schaffner no filme “Papillon”, de 1973. Com aventuras muito contestadas – muitos afirmam que a história foi roubada de outro prisioneiro –, a obra original relata as tentativas de fuga de Charrière, mais conhecido como Papillon, ladrão que, condenado à prisão perpétua, é enviado para a Guiana Francesa no início da década de 30, e passa os anos seguintes tentando voltar para a França. Agora nas mãos do dinamarquês Michael Noer, “Papillon” ganha uma nova versão que, apesar de referenciar a clássica de Shaffner, traz consigo suas particularidades.

Com Charlie Hunnam (de “Z – A Cidade Perdida”) no papel de Charrière e Rami Malek (da vindoura cinebiografia de Freddie Mercury) como Louis Dega, o “Papillon” de Noer explora muito mais a figura central do que o seu contexto. Na obra de 1973, o fato de a projeção iniciar já no momento em que os personagens embarcam para a Guiana Francesa é um dos elementos que caracteriza a trama focada em vários personagens. Já no filme de Noer, acompanhamos dez minutos dedicados exclusivamente ao Papillon, o que deixa nítido que a intenção é fazer um estudo do personagem.

Hunnam encarna um ladrão parisiense cheio de planos e sonhos. Quer juntar dinheiro para fugir com sua namorada. O roteiro, acertadamente, aposta em desenvolver um pouco desses personagens, e até introduz conflitos. Enquanto “Papi” – como é carinhosamente chamado por companheira e amigos –, pretende fazer roubos grandes e, dentro de seis meses, fugir, sua namorada deseja ir morar no campo o quanto antes. Introduzir esses pequenos conflitos de interesses é essencial para que, quando Papillon é preso, haja uma quebra no rumo dos personagens.

Sobre essa quebra, a forma como ela é desenhada pela luz e direção de arte do filme é um de seus pontos positivos. Se o ato inicial é dominado pelo vermelho das ruas, luzes e figurinos parisienses de 1930, assim que o protagonista vai preso, há um corte que imerge a obra num cenário acinzentado, denso e mórbido, que é, obviamente, a prisão. A partir dali, a paleta de cores de “Papillon” nunca mais alcança a saturação dos primeiros minutos, já que seu protagonista passará o restante da obra planejando ou executando algum plano de fuga.

Uma das escolhas mais interessantes da obra é a forma como ela desenvolve a relação de Papillon, Dega e demais personagens com o passado. Diferente do que estamos acostumados a ver em filmes de prisão e fuga, os prisioneiros enviados à Guiana Francesa rompem completamente com seu passado – há, inclusive, uma cena extremamente simbólica na qual um personagem desenha e literalmente apaga o rosto de sua esposa. O foco passa a ser a sobrevivência e a fuga, o que torna a narrativa essencialmente desesperançosa, já que esse rompimento com suas próprias trajetórias faz com que os personagens entrem num processo de desumanização – e que acaba sendo, infelizmente, o calcanhar de Aquiles de “Papillon”, mas isso será abordado mais para a frente.

Como o protagonista diz ao entregar o manuscrito de seu livro para a publicação, essa é a história não de um, mas de muitos homens. É possível, inclusive, que o Papillon da vida real tenha agregado ao seu diário muitos registros de outros prisioneiros. É, portanto, uma história focada em um personagem que é utilizado como símbolo de todo um sistema desumanizador. Devido a isso, há um afastamento do lado psicológico do protagonista.

Papillon passou um total de sete anos numa cela solitária, incluindo um longo período sem acesso à luz do sol. Isso, obviamente, ocasiona vários problemas psicológicos, algo bem retratado na obra de 1973 e que aqui é superficialmente arranhado mas não deixa nenhuma consequência. O Papillon de Charlie Hunnam permanece o mesmíssimo personagem, mesmo passando pelas experiências mais degradantes possíveis, algo que diminui o peso de suas lutas e jornadas de sobrevivência.

O interesse do filme de Noer é maior no contexto dos personagens e suas relações com o espaço do que com as psiques individuais. Pelo fato de ser uma trama que, como dito, conta a história de muitos homens, não só de um, essa é uma escolha compreensível, mas que tem um alto preço. “Papillon” é um filme que cria cenários depressivos, ameaçadores e desesperançosos, mas se esquece do que, para eles funcionarem, os personagens devem ser afetados por esses espaços.  A obra é, portanto, eficiente ao contar sua história, mas um pouco fria por se esquecer de fazer com que o peso das desventuras de Charrière, Dega e Cia. transformem seus personagens.

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