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Pássaros de Verão

Pássaros de Verão

Imperialismo e mito entram em conflito no novo filme de Ciro Guerra e Cristina Gallego

Matheus Fiore - 21 de agosto de 2019

O armênio Sergei Parajanov talvez seja o cineasta que mais dedicou sua carreira à valorização dos mitos fundadores, como é o caso em obras como “A Cor da Romã” e “A Lenda da Fortaleza Suram”. Nesses filmes, Parajanov leva ao cinema as culturas armênia e georgiana de forma que ambas as narrativas parecem pinturas que ganharam vida. Características como os planos chapados e com profundidade de campo pequena e o planejamento milimétrico de cada item inserido no quadro fazem com que os filmes citados ganhem um tom transcendental, onírico, que distancia os longas de Parajanov de um trabalho mais realista. Mesmo não tendo influenciado nos trabalhos anteriores de Ciro Guerra, Parajanov está muito presente em “Pássaros de Verão”, novo filme do colombiano que já foi indicado ao Oscar de Filme Estrangeiro com o brilhante “O Abraço da Serpente”. Em “Pássaros”, é como se Guerra e Cristina Gallego, co-diretora, apresentassem um universo Parajanoviano e o colocassem em choque com a invasão trazida pelo imperialismo.

No longa, acompanhamos uma vila indígena colombiana que, aos poucos, é consumida por disputas territoriais do cartel local, que aos poucos cresce à medida que vê o turismo pela maconha se tornar um forte chamariz para estrangeiros. Dividindo sua narrativa em cinco capítulos – “Erva selvagem”, “As Tumbas”, “A Bonança”, “A Guerra” e “O Limbo” –, Guerra e Gallego mostram como essa invasão corrói a cultura local, e estabelecem uma dinâmica que, a todo momento, coloca o mito e o capital em choque – já que o maior impeditivo para que o tráfico cresça na região é justamente a manutenção da cultura e dos costumes locais.

É interessante observar como, ao mesmo tempo em que o roteiro conduz o filme sempre guiado pela tensão entre tradição e novidade, os diretores utilizam essa base apenas como cenário para projetar as imagens que, por si só, carregam todo o potencial narrativo do filme. O ato de abertura, por exemplo, já se inicia com um ritual religioso e uma canção, mostrando a força da cultura naquela sociedade e preparando-nos para o choque que virá quando, aos poucos, aquele lugar idílico for invadido e consumido por algo externo. “Pássaros de Verão” carrega, em cada ato, uma mudança estética que retrata o momento pelo qual aquela sociedade está vivendo. Se durante o auge cultural da região, a luz dourada do Sol é dominante, aos poucos o cenário escurece e se encerra com um céu nublado e cinzento que escurece todo o plano.

E se falamos da locação, é peculiar a escolha de utilizar sempre cenários isolados no meio do deserto e construir cenas que comecem e terminem de forma a reiterar esse isolamento, que confere um forte caráter lúdico para o local. Mesmo que os conflitos retratados de fato tenham acontecido na vida real, Guerra e Gallego os filmam quase como se fossem parte de um conto milenar, bem como Parajanov fizera com “Suram”. Como se os eventos do filme se materializassem no meio de um nada, de um deserto que representa as ruínas de um lugar que não mais existe. É como se, desde o começo, soubéssemos que a cultura local será devastada pela ganância que se avizinha.

A visão de Guerra e Gallego parece ser de que as transformações daquela época foram um verdadeiro crepúsculo para a tradição local, o que é nitidamente visto na fotografia do clímax, que ilumina um dos mais tensos momentos da trama com a luz do por do Sol, como se houvesse um momento já estipulado para o fim daquela cultura. Não por acaso, também, o momento mais soturno, no qual um dos vilões entrega-se completamente aos seus instintos mais maléficos, é filmado em um ambiente extremamente escurecido, como se, ali, ele cedesse aos desejos de vingança mais primitivos e abdicasse de qualquer laço com sua própria cultura. “Pássaros de Verão” mostra não só como o pensamento capitalista se espalhou como uma doença, como também como as vítimas dessa doença se transformaram diante do processo de transformação visto no vilarejo.

Apesar de não ser um filme exatamente politizado – o filme rejeita, por exemplo, explorar o fato de que o turismo da maconha teve ligação direta com a relação entre o conflito entre capitalismo e comunismo da época –, o que “Pássaros de Verão” mostra é o resultado do enfraquecimento do mito, do abandono da cultura. É uma obra que, sempre que pode, trata a estética desse vilarejo com o mesmo carinho com que Parajanov organizava seus planos que mais pareciam pinturas. Em contraste com as pinturas de Guerra e Gallego, estão a violência trazida pela perda da harmonia. Se no ato inicial, os planos eram tão cheios de vida e com movimentos fluidos e naturais, ocupados pelos muitos personagens e lúdicos pela simetria e pelas luzes, em seus momentos finais, “Pássaros de Verão” nos mostram o deserto de esperança.

Funcionando tanto quanto uma trama de máfia mais simples quanto como um estudo aprofundado da forma como o imperialismo massacra a tradição, “Pássaros de Verão” é um filme que se mostra eficiente para mostrar um outro lado dos efeitos do narcotráfico na América do Sul. Enquanto boa parte das histórias narram o futuro destruído pelo tráfico, Ciro Guerra e Cristina Gallego preferem direcionar seus olhares para trás, mostrando não o futuro devastador, mas o passado esquecido, o deserto que restou onde antes havia uma cultura riquíssima.

 

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