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“Perifericu”, “Bonde” e “23 Minutos”

“Perifericu”, “Bonde” e “23 Minutos”

O enquadro fugidio e debochado

Egberto Nunes - 18 de abril de 2021

Quais imagens mostrar quando no decorrer de menos de um dia da sua narrativa, elas são interrompidas? Como dialogar com aquilo que persegue, machuca e enquadra? 

Esse texto é uma tentativa de aproximação entre Bonde, Perifericu e 23 minutos, curtas que estiveram em exibição na Semana de Cinema Negro de Belo Horizonte. Os três, cada qual na sua medida, e assim como tantos outros que esse texto não abarca, versam sobre a violência policial racista da volta para casa e sobre a quebra do corre, sobre trabalho. Não pretendo responder nenhuma das perguntas colocadas no início do texto e acredito que, no fim das contas, o cinema encontra sua forma própria em cada desencargo de sensibilidade próprio de quem filma.

A conversa entre os filmes também é interrompida. Seus corpos e estéticas pisam e fogem do tecido que são colocados. De um lado temos o corre pelo trampo, doutro, este juntamente com o corre pelo rolê. Bonde e Perifericu se conversam um pouco mais por seus personagens: pessoas pretas LGBTs, travestis, lésbicas. Falam sobre seus sonhos para a câmera, apontam para o espectador e são alvos de julgamento em casa e na descida da quebrada. Se estão ganhando a vida vendendo torta numa Batalha de Slam ou fazendo um digno #sextou na balada depois da semana cheia de estudos, são interrompidos. Mas se o filme nasce da sensibilidade de quem dirige, e até mesmo de quem vive ou conhece quem viveu aquilo, a quebra é fuga para o inconsciente. 

É interessante notar aqui como cada um desses dois filmes são concentrados na vontade que são movidos. A militância em Perifericu, como palco para o poesia falada de Denise, que também são as imagens da história dos movimentos sociais LGBTs nas ruas que protagonizam o corte entre o questionamento que ninguém pediu na balada, e dessa conexão, no retorno à casa.

Há um movimento bem constante aqui também, onde sempre se está esperando pela próxima ação, atentas com o tempo e com a chegada, concentrada acima de tudo numa preocupação onde somente quando o cinema é enxergado pelas personagens é que tudo é esquecido – ao mesmo tempo que também é daquilo que está ausente na imagem é de que se trata, o contato entre quem impede e quem se movimenta. A feitura da torta, a conversa do trampo, é tudo muito rápido, e enquanto a câmera movimenta a casa, há ainda mais movimento. O choque vem pela transportação de Denise, no momento em que ela tem a ordem para encostar, é quando a câmera foge e ela mais gesticula e vive como nunca.

Em Bonde, a estética é um pouco mais próxima pois também temos balada, mas é a conversa de Whatsapp, o storie do Instagram e o vídeo da blogueirinha que atua ao lado das outras protagonistas. Nesse sentido, tensiona o próprio espaço real em que é filmado. O filme é todo delas, a imagem é toda delas, a ruptura é delas. Depois da entrada no trem para o rolê, quem controla a imagem são elas. E os olhares de julgamento para o palco da “estação fritação” aparecem recortados na tela, mas quem liga? O enquadro agora quem faz são elas.

Esse próprio digital das relações e da comunicação, ou de como são colocados os discursos nas telinhas vira personagem da tela operado pelas personagens no momento do enquadro. E quando a noite vai escurecendo e esperamos o conflito, a voz de ordem aparece fora do plano e paralisa mais que tudo, porém, a ruptura com a imagem foi mais forte e vemos um “tutorial de como reagir num enquadro”, que vai dialogando com seu fundo, com seu conto. Numa aproximação com Perifericu, podemos até dizer que o discurso do slam está aqui presente, mas de outra forma. Se é deboche, se é a arma de ataque, se é ferramenta possível de ser usada para o constrangimento, se é tudo isso, não se afirma e parece ser tudo isso.

Os filmes comentados operam não em desvendar e mostrar esse real que vem à mente e ao monte, que tanto é visualizado nas manchetes dos telejornais. O príncipio do prazer e do sonhos estão aqui. A realidade pode ser mais forte, às vezes é. Mas o sonho deve prevalecer em conflito com a mira, seja pela canção, seja pelo deboche.

Ainda nesse sentido, há uma certa repetição que recai no incômodo da imagem e na obrigação do olhar. Mas quanto mais os segundos vão rolando, mais a performance vai se mostrando. O enquadro foge e o enquadro é debochado. Acima de tudo, ele permanece, incômodo, paralisado, sem que saibamos seu resultado, mas que nos faz conflitar entre os dois espaços de tensão.

Penso aqui também, enquanto escrevo, em Cabeça de Nêgo e a filmagem da brutalidade policial pelo celular dos alunos, que se confundem com o espaço aberto de antes que visualizamos. É essa dinâmica de se voltar cada vez mais à ferramenta que tem a força aqui, que parece mover os espaços e tirar qualquer conforto ao mesmo tempo que reposiciona os elementos da ação.

Há uma certa performatividade negra que vai totalmente contra a norma convencionada. Mostre, mostre o filme preto denúncia da violência policial, cruel e doído. Mas vai até o ponto e fuja. E sem perder a seriedade, a tensão, o incômodo, vai através da vontade com que a forma permite e aja na corda bamba entre o deboche e a libertação.

No curta 23 minutos, o foco é em se acostumar na linguagem do trampo e da perseguição do sonho. É entre se agarrar no orçamento do dia e na decisão de seguir com a arte que divide aqueles que são perseguidos pela câmera enquanto vão atrás do trampo. Sem muitas explicações, apenas o padrão: “eu sou trabalhador, senhor” e os passos da corrida e o barulho da respiração sem fôlego. É aqui que a filmagem mais se contrasta, pois antes, ficamos com os diálogos mineiros e filmados fora de uma perspectiva, sempre turvos, meio distantes; mas aqui é mais direto e ainda mais inquieto. Novamente, não temos a visão de quem mira, de quem vai atrás ou persegue, na verdade, aqui ela se torna a própria ferramenta que captura e vai atrás, mas o corte resiste em não mostrar essa imagem. Nessa ausência, ficamos sós, com as incertezas de quem correu, e com o apego à arte, que já estava no trabalho desde o início, como necessidade de gritar os questionamentos. 

Perifericu, Bonde e 23 minutos fluem nessa vontade de gritar através daquilo que pode ser agarrado e conquistado, seja a poesia, a rede social ou o rap, tudo isso enquanto se evita e posiciona o enquadramento do enquadro.

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