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Pieces of a Woman

Pieces of a Woman

Mundruczó busca a humanidade por trás dos arquétipos e abraça a complexidade moral de sua história

Matheus Fiore - 11 de janeiro de 2021

Os temas abordados pelo húngaro Kornél Mundruczó em Pieces of a Woman não são exatamente novidade, nem mesmo sua estética, que procura o realismo e minimiza o uso dos recursos narrativos e cinematográficos mais usuais da ficção. Entretanto, o que torna um filme bom nunca é seus temas – ou o quão novos eles são – ou mesmo sua inovação estética, e sim como essa relação entre forma e conteúdo se traduz no contar da história; como essa união constrói uma unidade. Com isso em mente, vejo Pieces of a Woman, em sua completude, como uma obra muito interessante não somente sobre o luto, maternidade, relacionamentos, perdão e o conflito entre interesses individuais e coletivos, mas sobre como tudo isso se amarra e influencia mutuamente.

Mundruczó apresenta um casal típico, formado por Martha (Vanessa Kirby) e Sean (Shia LaBeouf). Os dois personagens estão prestes a ter sua primeira filha, mas em um parto complicado, o bebê acaba falecendo logo após Martha dar à luz, e a parteira Eve (Molly Parker) acaba sendo escolhida como culpada. O que se desenha a partir dessa tragédia é um estudo calmo e bastante contido sobre como a perda do bebê impacta nas vidas de Martha e Sean e seus relacionamentos, e é justamente no acompanhamento dos rituais normais do dia-a-dia que Mundruczó encontra as melhores coisas de seu filme.

Pieces of a Woman não traz grandes brigas e discussões. Inclusive, o grande momento dramático do filme, um desabafo da mãe da protagonista (vivida por Ellen Burstyn), talvez seja o momento mais desinteressante justamente por quebrar a normalidade e a simplicidade, inserindo um artifício dramático um tanto quanto apelativo que destoa do restante da obra. Mundruczó parece mais afeito não só aos pequenos rituais – a carga emocional de ir ao cemitério discutir sobre a lápide de um bebê, por exemplo – e aos pequenos gestos – a bola comprada pelo casal para facilitar o parto e que se torna objeto de violência a medida que o relacionamento entre Martha e Sean se desgasta.

Mas há algo ainda maior em Pieces of a Woman que permeia todos esses elementos. Há um profundo e latente interesse de Mundruczó pela forma como os personagens são influenciados por seus arredores; pelo conflito da ética da sociedade com a moral pessoal de cada indivíduo. Esse interesse, vez ou outra, chega a ser verbalizado, como quando a mãe de Martha diz que tem medo de sua filha ser “julgada” e por isso, incentiva que a jovem processe a parteira. Nesse ponto, por mais que os cinemas de Mundruczó e Clint Eastwood sejam tão diferentes, é difícil não lembrar de O Caso Richard Jewell, filme que também tem seu clímax ambientado em um tribunal e que, assim como Pieces, está a todo momento mostrando um mundo consumido por extremos, buscando limpá-los de nossa vista para que vejamos as nuances de casa situação. Para que possamos ver para além dos arquétipos e das obviedades e enxerguemos não só a natureza das dores dos personagens, mas sua própria humanidade.

No caso de Pieces of a Woman, a ideia é justamente explorar a trajetória de uma mulher que recusa ao máximo discutir ou engajar na briga judicial (e moral) contra a parteira Eve, pois sabe que precisa buscar um equilíbrio, uma sensatez, a fim de deixar de lado todos os seus sentimentos e agir com justiça. É a busca por discernimento, a aceitação das fatalidades da vida e o encontro com a paz para seguir adiante que permite que o ciclo de punitivismo alimentado por mídia e familiares seja quebrado. Nesse ponto, o silêncio ao qual Martha se submete é peça-chave na construção do drama de Pieces. Por estar sempre transitando entre o luto, a aceitação e o amadurecimento, a protagonista é uma personagem mais reativa e quieta – um contraponto imenso ao marido e à mãe falastrões e impulsivos. O grande desafio da personagem é manter sua ética intacta enquanto todos ao seu redor querem contaminá-la para que Eve absorva pessoalmente o ódio de todos os que foram magoados com a tragédia.

Conseguindo sempre negar os caminhos dramáticos mais fáceis e mesmo assim estabelecer um bom drama, Mundruczó faz de Pieces of a Woman um interessante estudo de resiliência, superação e princípios. Uma obra que apresenta um casal na situação de maior dor que uma pessoa pode viver: a perda de um filho. E a partir disso, mostra como cada um reage, de acordo com suas crenças e princípios e de acordo com como cada um absorve os estímulos externos e mantém seu caráter intacto. Pieces of a Woman recusa as respostas e estímulos fáceis justamente por não haver nada de fácil na vida e especialmente em uma situação como a retratada. É por isso que a escolha por um cinema mais lavado e contido, mais afeito ao “realismo” e pouco interessado nos recursos dramáticos mais típicos, faz tanto sentido: por Mundruczó buscar a humanidade por trás dos arquétipos e abraçar a complexidade e a inexorabilidade do destino.

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