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Rastros de Ódio (1956)

Rastros de Ódio (1956)

Não apesar, mas sim por todas as contradições, John Ford faz por merecer o topo do panteão histórico dos cineastas

Vitor Torga - 20 de janeiro de 2021

Dentre os cineastas da Era de Ouro de Hollywood, talvez nenhum tenha sido mais aclamado em vida, e questionado em morte, do que o mestre do faroeste John Ford. Além de ser um dos maiores ícones da história do cinema, é também um dos mais aclamados por vários outros. Jean-Marie Straub o descreveu como “o mais brechtiano dos cineastas”, Frank Capra se referiu a ele como “rei dos diretores”. Orson Welles ao ser questionado sobre qual diretor mais o atraía, famosamente respondeu: “Eu gosto dos velhos mestres, ou seja John Ford, John Ford e John Ford.” E sobre o próprio Rastros de Ódio, ninguém menos que Jean-Luc Godard comparou o final com “o reencontro de Ulisses e Telêmaco” na Odisseia de Homero. No entanto, não é incomum se deparar com questionamentos recorrentes em sua filmografia, notoriamente a duração um pouco longa em suas narrativas relativamente simples, a ausência de protagonistas femininas e a representação dos povos nativo-americanos em seus faroestes.

Visitar (ou no meu caso, revisitar) grandes clássicos do passado requer certa imersão no momento em que o filme foi produzido, não só pelo típica enxurrada de pensamentos socialmente atrasados, mas também por carregarem métodos e arquétipos há muito abandonados pela indústria cinematográfica contemporânea. Modelos narrativos, estilos de atuação, composições visuais, estudos de moralidade e afins são tendências muito específicas de cada uma das muitas eras do cinema. Portanto, ver tantos clássicos indiscutíveis reduzidos a “devagares”, “xenofóbicos”, “simplistas” é de partir o coração, ainda mais quando tais reduções permeiam o espaço profissional e dos entusiastas do cinema. Não nego que em muitos casos é possível encaixar tais caracterizações, mas arrisco dizer que na maioria das vezes, isso tende a ser mero revisionismo superficial disfarçado de progressismo. Espanta a facilidade com que se desmerece um cinema tão influente e respeitado universalmente por vários dos maiores mestres da indústria.

A história de Rastros de Ódio é: Ethan Edwards (John Wayne), um ex-soldado confederado, retorna à casa de seu irmão Aaron (Walter Coy) no Oeste texano e em um momento descuido, cai na tática de distração de uma tribo Comanche, permitindo que esta massacre sua família e rapte suas sobrinhas. Acompanhado de seu mestiço sobrinho adotado Martin Pawley (Jeffrey Hunter), ele passa os próximos anos em busca das sobrinhas para resgatá-las de seus captores. É uma descrição que pode vir a preocupar o desavisado ou o superficial; um homem branco que lutou pelos direitos escravagistas perseguindo o povo nativo da terra que ele ocupa e a todo momento os taxando de selvagens. Mas é aí que Ford (e mais alguns contemporâneos dele) abusa da sua genialidade para passar a perna nos espertinhos do momento. O velho John está completamente consciente das limitações morais do seu protagonista, e ele simplesmente não se importa.

Muito se fala de querer filmes com protagonistas imorais, imperfeitos, defeituosos mesmo, mas quase nunca se valoriza o cinema que realmente apresenta personagens que estão além da redenção, tanto pela dificuldade do público em se identificar ou gostar desses protagonistas ou pela decisão errada do filme de oferecer essa redenção a esses personagens que não merecem. Ethan Edwards é um monstro, certamente, mas nem por isso deixa de merecer seu próprio filme. Não é um herói limpinho, honroso e carismático porque simplesmente não é um herói, é apenas o personagem principal. Ford desde o início estabelece o caubói como um sujeito detestável. Apático com o irmão, ressentido com o Estado, teimoso em suas convicções cretinas e ainda por cima, um hipócrita. O único carinho que o sujeito oferece é dirigido à cunhada Martha (Dorothy Jordan) e aos sobrinhos, praticamente roubando o lugar do irmão como patriarca da casa. Ainda há a forte implicação que o ouro e os dólares que carrega consigo são roubados e que talvez a caçula Debbie (Natalie Wood) seja na verdade a filha de Ethan, visto que este deixou a casa há oito anos, a mesma idade da sobrinha no início da trama.

Há inclusive um pequeno momento brilhante em uma conversa entre Ethan, Aaron e Martha, em que Ford posiciona Wayne e Jordan no mesmo plano enquanto ouvem Coy falar. Ethan olha para Martha até o momento que precisa responder Aaron, nesse momento ele dirige o olhar para o irmão e finalmente Martha olha de volta para ele. Esse momento indica onde se encontra a verdadeira afeição de Martha, mas também a submissão a qual está imposta, sempre dando atenção ao homem da vez. Quando Ethan retorna à casa após o massacre familiar, não demonstra nenhum sentimento em relação à perda do irmão ou sobrinho. Em voz alta ele apenas repete o nome da cunhada.

Outra prova do desinteresse de Ford em redimir Ethan é através de sua relação com Martin ao longo do filme. Em nenhum momento ele estende alguma simpatia que seja pelo sobrinho adotado, sempre o tratando com certo distanciamento e desconfiança devido a sua herança indígena. No máximo chega a aceitá-lo relutantemente como ajudante, relegando-o ao papel de servitude. O único momento em que parece se importar com Martin logo se revela que Ethan apenas estava usando-o como isca para emboscar um ladrão. Não há uma mudança de personalidade, uma aproximação sincera, nem mesmo com o único disposto a dividir sua missão ao longo dos anos. Sequer aceita dignificá-lo como homem, sempre referindo-se a ele como “garoto” e afins e o desdenhando por não conhecer o Velho Oeste tão bem como ele. É importante reconhecer que a natureza do desprezo de Ethan pelos nativos não vem de ignorância, ele é extremamente versado na cultura Comanche, conhecendo as táticas de batalha, costumes, crenças religiosas e até fala a língua, mas isso não o impede de odiá-los ferventemente.

O ponto que talvez seja o mais difícil de “justificar” de certa forma não é nem a decisão do ex-soldado de matar a sobrinha ao encontrá-la vivendo em harmonia com os nativos, chegando a ser uma das esposas do chefe da tribo, mas sim a dela de “aceitar” o resgate. Em um primeiro momento pode parecer uma decisão apressada, para adiantar o final ou confirmar a civilidade dos brancos frente a selvageria dos Comanches. Mas há dois poréns; o primeiro é a cena em que Ethan e Martin finalmente reencontram Debbie. Ao entrarem na cabana de Cicatriz (Henry Brandon), o tradutor explica que os filhos do chefe da tribo estão mortos e portanto as suas esposas, dentre as quais a sobrinha tão procurada, ocupam o lugar de honra da cabana. É um ponto-chave porque expõe que o ataque dos Comanches à família Edwards não foi um ato de selvageria impensada, mas de represália vingativa e da mesma natureza que nossos protagonistas tentam exercer durante o filme inteiro. Isso já põe em xeque a ideia que o filme simpatiza ou defende a superioridade branca.

O segundo porém, e talvez o mais importante, é a cena do confronto final, onde Martin mata Cicatriz e Ethan o escalpeia. Até ali o personagem de Wayne estava decidido a matar a sobrinha, preferindo vê-la morta do que vivendo harmoniosamente na tribo, mas ao reafirmar sua dominância sobre o inimigo “selvagem” performando o seu ritual, o escalpe, ele reencontra em si não a bondade, mas o poder sobre a mulher. A própria Debbie nunca engaja na ideia de ser resgatada por Ethan. Pelo contrário, é simpática somente a Martin, seu irmão adotivo que também possui herança nativo-americana. Ela teme a represália do tio até ser poupada. No raciocínio atrasado mas coerente de Ethan, a mulher é a posse de um homem, e Debbie, liberta do esposo Cicatriz, deve resignar-se novamente a essa submissão como forma de sobrevivência. O poder havia sido maculado pelo sequestro e transformação social que esta havia passado, mas assim como a morte do irmão o liberta para expressar a afeição pela cunhada, a morte de Cicatriz liberta Ethan para novamente ser o “dono” de Debbie. A masculinidade é reposta, tornando possível a reconciliação para o protagonista.

No entanto, em uma das viradas mais geniais que o cinema já viu, num momento de brilhantismo imagético tão impensável que ainda está para ser alcançado, Ford nos nega essa conciliação. Ele não permite que Ethan, que deveria ser o patriarca após a morte do irmão (nunca se confirma isso mas o nome Aaron indica que o falecido era o mais velho), adentre o lar dos vizinhos Jorgensen (que não carregam um típico sobrenome americano, mas norueguês, povo que tipicamente imigrou para o norte, bem longe do Texas). Em certo momento do filme a senhora Jorgensen havida declarado: “Algum dia esse país será um bom lugar para se estar. Talvez ele precise dos nossos ossos abaixo da terra antes que esse tempo possa chegar.” E é isso. A sobrinha criada pelos “selvagens”, mesmo demonstrando certo estranhamento, é bem recebida pelos proprietários e o mestiço Pawley entra como esposo da filha Laurie Jorgensen (Vera Miles), mas Ethan sequer pisa na varanda do rancho. Ele apenas observa pela porta aberta, e nós o observamos finalmente em vulnerabilidade, com o olhar perdido e timidamente segurando o braço. Não há espaço para figuras como ele no bom lugar que a América pode se tornar um dia.

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