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Sequizágua

Sequizágua

Da exploração da miséria alheia ao estudo do impacto do êxodo rural na juventude

Matheus Fiore - 28 de janeiro de 2020

O documentário em longa-metragem de Maurício Rezende que abriu a Mostra Competitiva Aurora da 23ª Mostra de Cinema de Tiradentes é um filme bastante peculiar. Apesar de partir de relatos de um caso real, aos poucos o filme se liberta do modelo jornalístico e abraça a ficção, já que sua segunda metade é bastante roteirizada e atuada pelos personagens. E é somente quando faz essa inversão que “Sequizágua” consegue respirar e se tornar uma boa obra.

“Sequizágua” conta a história de uma comunidade do interior de Minas Gerais que tinha sua vida baseada na agricultura, mas que teve esse modelo de vivência totalmente arruinado pela chegada e pelo domínio do agronegócio. Rezente filma, então, os depoimentos daqueles que tiveram suas vidas prejudicadas pelas mudanças na região, e como as novas gerações lidam com isso. A câmera de Rezende quase sempre é estática, procurando nos olhares dos entrevistados criar uma conexão emocional com o público.

O problema de “Sequizágua” é que, durante toda a primeira metade, o documentário oferece pouco de novo em relação ao que vemos todos os anos no cinema brasileiro. Aqui, porém, entra um elemento ainda mais problemático, e que já não é tão comum. A constante busca por olhos marejados e desesperançosos faz com que o drama não seja construído pelas falas, e sim pela exploração da fragilidade emocional das pessoas, o que, além de trazer problemas éticos óbvios, também acaba sendo um método muito rasteiro de construção da forma do filme.

Ora, o que seria filmar pessoas em situações tristes e humilhantes se não a reles exploração de suas condições? Com isso, a própria forma do filme, mesmo que não seja reacionária, se torna prejudicial ao debate, por não oferecer uma articulação ou um debate sobre o tema, apenas o retrato do sofrimento de terceiros para fins artísticos. Se pelo menos houvesse, pela justaposição das imagens, a construção de uma ideia mais bem articulada, até poderia haver sentido. O que vemos, porém, é uma sucessão de exposições de sofrimento alheio que pouco dialoga a não ser pelo mero retrato da dor dos afetados pelas mudanças promovidas pelo agronegócio.

Aos poucos, “Sequizágua” se afasta do retrato do cotidiano e passa a abordar uma narrativa mais fictícia. Isso ocorre pelo interesse de Rezende por estudar não só os efeitos da invasão do agronegócio na região, mas também os impactos disso nas diferentes gerações. A obra, então, passa a acompanhar também a rotina de crianças e adolescentes. Ao utilizar essa abordagem, os problemáticos planos de crianças trabalhando e adultos desesperançosos cede lugar a um interessante estudo de como os jovens lidam com as complexidades de viver em uma região que foi, de certa forma, devastada pelo capitalismo, e com o constante sonho por uma vida nova, em outro lugar.

Visualmente, o filme ganha muita força ao abraçar o ficcional. Com ajuda do roteiro de Affonso Uchoa (do brilhante “Arábia”) “Sequizágua” se torna um filme capaz de relacionar personagens e espaço de forma mais interessante esteticamente, utilizando as belas e grandiosas paisagens e a inocência da juventude para criar um universo cinematográfico interessante. O desejo dos jovens por abandonar o campo e ir para a cidade, por exemplo, é apresentado pelas cenas ambientadas nas escolas nas quais as crianças aprendem sobre o êxodo rural, mas transforma-se em um elemento maior da mise-en-scène quando os cenários do campo são sempre pano de fundo para momentos tristes e solitários daquelas crianças.

Essa segunda metade, mesmo que muito superior a primeira, ainda é incapaz de salvar “Sequizágua” de soar genérico por repetir uma demanda já antiga do cinema nacional, e baixo por, enquanto tenta proteger a memória e honrar os que tiveram suas vidas arruinadas pelo agronegócio, acabar por explorar seu sofrimento. Repetir imagens de pessoas desgastadas, desoladas e humilhadas é um caminho fácil demais, e que extrapola o limite da denúncia e se torna, na verdade, um prolongamento da humilhação de quem já teve sua vida bastante prejudicada. Principalmente quando, como resultado final, não há uma construção narrativa através dos registros, apenas o simples retrato da dor.


Texto originalmente publicado como parte da cobertura do Plano Aberto para a 23ª Mostra de Cinema de Tiradentes. Para conferir toda a nossa cobertura, clique aqui.

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