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Série 1 – Mostra Foco (A Morte de Lázaro; Ingra!; Bicho Azul; Iceberg; Prosopopeia)

Série 1 – Mostra Foco (A Morte de Lázaro; Ingra!; Bicho Azul; Iceberg; Prosopopeia)

O fazer Cinema através da ficção como um meio de exorcizar o passado, sair do limbo e ressuscitar.

Michel Gutwilen - 25 de janeiro de 2022

Não é fácil e nem sempre preciso procurar um elemento homogeneizante em diferentes filmes que foram pensados individualmente, mas o ato curatorial — que por sua vez é um ato autoral dos curadores: Camila Vieira, Felipe André Silva e Tatiana Carvalho Costa — de agrupar curtas-metragens em pequenas mostras dentro de festivais de Cinema aparece como uma força criativa tão fascinante quanto a dos diretores de cada filme. Por isso, é sempre um desafio bem-vindo para o crítico-espectador não só refletir sobre os universos internos de cada obra, mas também pensar a razão delas terem sido escolhidas para uma exibição conjunta, de modo que suas aproximações e diferenciações se ressaltem neste processo de choques. Assim, surge o desejo de pensar a Série 1 da Mostra Foco, dentro da 25ª edição do Festival de Tiradentes (2022), composta por A Morte de Lázaro, Ingra!, Bicho Azul, Iceberg e Prosopopeia. Sem buscar reduzir esses filmes a apenas isso, mas em comum a todos eles parece nascer o desejo pela ficcionalização como possibilitadora de um renascimento através de uma representação exorcista, com o Cinema sendo uma ponte entre passado e presente, no meio de limbos fantasmagóricos (que são mais simbólicos do que literais). Neste bingo de ideias, algumas palavras-chaves: morte, renascimento, ficção, ruídos, futuro.

Por isso, é simbólico que o primeiro curta da Série 1 seja A Morte de Lázaro (de Bertô), cujo tema literal é a ficcionalização de uma passagem bíblica sobre a ressurreição de Lázaro.  Em uma roteirização bastante fiel, traduz-se o material escrito da Bíblia para a linguagem cinematográfica por meio de uma encenação bastante rígida e formal, com o posicionamento dos atores no quadro funcionando quase que como um tableau vivant. Tanto por forma, mas também por seu conteúdo, que foge de uma temática social contemporânea mais explícita, trata-se de uma produção até fascinantemente anômala no cenário brasileiro, em que seus paralelismos mais imediatos lembram mais um cinema europeu de tipos como Robert Bresson ou Eugène Green (um colega crítico também mencionou a dupla Straub-Huillet, o que faz todo sentido). A evocação do extraplano, principalmente através dos olhares dos personagens, como se buscassem uma conexão com o divino fora do quadro, assim como a forte presença da natureza na composição pictórica do plano, seja do céu azul ou da floresta verde, fortalecem dialéticas entre homem e natureza, assim como carne e espírito, tangível e intangível. É verdade que existe um certo aspecto limitador na escolha pela literalidade na narração do conto, pois a obra se torna hermética a subtextos e possibilidades tangenciais de leituras, mas isso não significa que a própria literalidade não seja por si só um posicionamento consciente. Neste sentido, a A Morte de Lázaro também existe enquanto crença no próprio ato de ficcionalizar o texto bíblico apenas em sua essência, sem recorrer a adereços e desvios, focando-se na própria transformação do abstrato do texto escrito em imagens. Que o curta se inicie da pintura imóvel na tela para o movimento do Cinema e depois se encerre no movimento inverso reconhece o próprio milagre do Cinema em dar vida através de imagens, que o próprio Cinema é um tipo de ressurreição, que Lázaro continuará renascendo enquanto essa história for contada.

Em seguida está Ingra!, dirigido por Nicolas Thomé Zetune e que inicialmente pode chamar a atenção do espectador justamente por ser da mesma produtora do curta anterior, a Filmes de Amor. De imediato, percebe-se as similaridades entre as duas obras, principalmente em seu formalismo (se A Morte de Lázaro é bressoniano, Ingra! é maneirista) e pela presença da religião no tema. Particularmente, pelo meu apreço com ambas, passo a olhar com muita atenção os próximos movimentos da produtora em festivais e recomendar para que também fiquem. 

Sobre o filme em si, trata-se de um suspense apocalíptico e fantástico ambientado em uma São Paulo contemporânea. Nas mãos de Zetune, essa metrópole se torna um espaço de estranhamento e incômodo, com muita poluição sonora e também com planos que colocam uma ótica de vigilância sob a protagonista. O modo como a câmera olha para a ela é muitas vezes o do ponto-de-vista de um voyeur afastado, ou por panorâmicas que a seguem (mas que também a perdem no meio da rua), além da decupagem em ambientes internos que parecem mais a visão de câmeras de vigilância. Como um quebra-cabeça, nada faz muito sentido inicialmente e é preciso buscar respostas no rosto da protagonista, alienada ao mundo e perdida no olhar para o extracampo. Se em A Morte de Lázaro este recurso significava a busca por uma salvação, aqui é mais como uma admissão de culpa, um tormento que não vai embora e uma recusa em olhar para dentro. Progressivamente, o sentimento de maldição e o desconforto vão se exteriorizando e contaminando a mise-en-scène de Zetune com o surgimento de elementos como um peixe morto, um aquário com caveira, uma trilha não-diegética agressiva, barulhos de trovão, rádios que anunciam o apocalipse, a cor artificial de luzes natalinas pela cidade e personagens peculiares. Para além de seu exótico e exercício de gênero, dentro da temática da Série 1, Ingra! é mais uma obra cujo presente existe enquanto um limbo entre passado e futuro, que precisa fazer da sua narrativa um exorcismo do trauma para seguir em frente e, assim, de certa forma, ressuscitar. Enquanto A Morte de Lázaro é um filme de luz, Ingra! é um filme de sombras. Um é sobre a ascensão aos céus e o outro sobre a descida ao inferno.

Ainda sobre morte, luto, ressurreição e Cinema, aparece o terceiro curta, Bicho Azul, de Rafael Spínola. Se A Morte de Lázaro era o mais literal para começar a Série 1, Bicho Azul é provavelmente o que mais funciona como síntese de toda esta programação, justamente por reconhecer o Cinema e a criação da ficção como um gesto terapêutico. Sobre o processo de luto e rememoração, a narrativa do curta faz um movimento do abstrato para o concreto, em escala, esclarecendo seu mistério inicial conforme progride. 

Primeiramente, ele começa pela transcrição de um poema de Lydia Davis sobre o amor, o que até aí nada diz. Logo em seguida, uma imagem de arquivo de um lugar indefinido é acompanhada por uma narração em off (que é a leitura de um e-mail do narrador para uma amiga) descrevendo os últimos momentos com seu animal prestes a ser sacrificado. Conforme a narração se desenvolve, um espectro fantasmagórico que existia na imagem vai cada vez mais sendo substituído pela imagem concreta do que se revela cachorro. Ora, a progressão do imaterial ao material — do poema escrito à descrição oral do animal ao surgimento concreto do cachorro — não deixa de ser uma espécie de ressurreição como a dos outros curtas da Série 1, que aqui é a mais potente justamente por ser o primeiro dos três que possui raízes no mundo real. Quanto mais o narrador fala de seu animal, mais as memórias abstratas ganham vida, como se o gesto de lembrar fosse justamente aquilo que continua permitindo sua existência no mundo. Assim como os outros dois, Bicho Azul, apesar de sua origem no documental, se estrutura como ficção ao criar uma narrativa que vai revelando gradualmente como um mistério, o que por sua vez é mais uma crença no processo de encenação como também uma possibilidade de libertação. Lázaro, Ingra e o Bicho Azul só podem seguir em frente quando eternizados no Cinema, com suas ressureições testemunhadas pela imagem.

Indo para a segunda metade da Série 1, Iceberg, de Will Domingos (editor dos dois últimos longas do promissor Daniel Nolasco), talvez seja o que, individualmente, menos me atraía dos cinco. Afinal, trata-se de um filme confuso, mas não em um sentido positivo — como uma obra que não faz sentido ‘lógico’, mas que possui apelo sensorial (‘lynchiano’, como se diz popularmente). Aqui, há a sensação de que muitas informações, por problemas de roteiro e na própria tradução do texto para imagens, ficaram para trás. Tal dedução pode ser percebida pela extensa sinopse disponibilizada pela Mostra Tiradentes que descreve uma história que existe muito mais nas entrelinhas do que por aquilo que apenas pelo que se vê, existindo mais na sua intenção do que em sua execução. Em sua narrativa, Iceberg cria dificuldades ao espectador na tentativa de tornar misteriosa e complexificar sua simples história, fazendo da compreensão apenas algo fragmentátio de ideia soltas. É claro que no contexto da Série 1 é possível perceber o direcionamento fantasioso do filme, que usa da ficção sobre um evento real (a COVID 19), da existência do subtexto LGBTQIA+ e os problemas familiares, e de um certo renascimento com uma nova vida na pandemia, mas tudo isso é rarefeito demais em um projeto pseudoprofundo demais.

Por fim, Prosopopeia, de Andréia Pires, encerra a Série 1 como uma fábula popular brasileira, mas em condições especiais. Paradoxalmente, parece um daqueles road movies de circo — algo como Bye, Bye, Brasil (Carlos Diegues) —, mas que é limitado pelo formato de “filme-bolha”, com seu espetáculo acontecendo no espaço de um apartamento — não sei da contextualização de sua produção, mas pensar que este foi um filme possível a ser feito dentro do mundo pandêmico como uma solução criativa dá um charme maior a ele. Como a fala de uma das personagens, as nuances entre o fato e imaginação dão corpo a este musical que parece existir em um espaço mais simbólico do que concreto e mais como um fluxo onírico do que narrativa. Ao flutuar por esses corpos em movimento dentro deste lugar fechado decupado de maneira inventiva e enérgica, surge o terreno propício para uma espécie de não-espaço-tempo imaginário, que pode ser qualquer coisa que aqueles personagens acreditam ser. De mesmo modo, os próprios personagens também existem dentro de uma lógica imaginária a partir de uma ficcionalização de suas identidades, com figurinos e caracterizações muito próprias que, acompanhados pela própria letra da música, podem renascer a partir desses papéis e suas representações em telas. Por isso, para encerrar a Série 1 com otimismo, não há nada mais animador do que a saída do espaço enclausurado e a ida ao mundo real, conectando novamente mundos, e como uma libertação de forças até então contidas, renascendo em um sentido completo. 


Acompanhe a cobertura completa aqui.

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