Ajude este site a continuar gerando conteúdo de qualidade. Desative o AdBlock

Sertânia

Sertânia

Geraldo Sarno articula exemplares imaginação e vitalidade em seu novo “nordestern”

Igor Nolasco - 20 de agosto de 2020

Pode parecer paradoxal constatar que, em um momento no qual o cinema brasileiro fervilha de novos realizadores, um dos filmes mais potentes dos últimos anos venha de uma figura que já está presente no meio há décadas. Aos 81 anos de idade, Geraldo Sarno entrega uma obra que merece ser destacada pela força com a qual utiliza suas imagens de forma expressiva e esteticamente estimulante para discorrer sobre assuntos seculares na arte brasileira. O longa, exibido ainda esse ano na mostra Tiradentes, marca presença no IV Festival Ecrã, realizado online e gratuitamente entre os dias 20 e 30 de agosto.

Conhecido por sua estreia no cinema, o seminal média-metragem “Viramundo” (1965), e por curtas como “Vitalino/Lampião” (1969), Sarno é um artista vivido. Já passou pelo curta, pelo média e pelo longa-metragem; em temática, foi da memória do cangaço à literatura de Balzac, com passagens por Monteiro Lobato. O que parece ser uma constante em sua obra é um olhar voltado ao Brasil popular em todas as suas facetas. Da crônica cotidiana ao evento extraordinário, da construção dos mitos à celebração dos mesmos; um olhar tenro em relação ao povo que não deixa de se preocupar com as mazelas que o assolam.

Tudo isso encontra-se sintetizado em seu novo longa. Sarno trabalha a linguagem de forma onírica a partir dos delírios febris do protagonista, o jagunço Antão. Há um destaque para a câmera que mantém-se em um estado de transe (dentro do jargão de Glauber Rocha, contemporâneo de Sarno). Movimentos livres, por ora caóticos, integram o ponto de vista do espectador ao do personagem, ainda que fugindo de obviedades possíveis dentro desse tipo de proposta, como um número excessivo de planos em primeira pessoa.

Nesse sentido, mostra-se benéfico que o cineasta acumule idade e experiência, estando desprendido dos vícios estéticos contemporâneos. “Sertânia” é nitidamente o trabalho de um veterano, que mesmo não constando entre os cineastas mais badalados do cânone da cinematografia nacional, ainda mostra-se em ótima forma. É um respiro em meio ao cinema brasileiro contemporâneo dito “de arte”, que por vezes, em técnica, soa como uma igrejinha na qual todos os realizadores (ou ao menos, os mais bem sucedidos – ou ainda os que almejam alcançar tal posto) parecem ter tomado como convenção uma abordagem fria, asséptica e distanciada na forma como planejam tudo; de narrativa a enquadramento, de personagens a colorização. Sarno é um respiro que pulsa com sangue e com vida.

Em momento algum, no entanto, o cineasta parece desajustado ou preso a uma linguagem engessada e devota ao passado, por mais que sua câmera remeta ao Cinema Novo. A câmera de Sarno, na verdade, vai além do Cinema Novo; se beneficia de uma nova praticidade técnica para evoluir o tipo de fotografia que tornou célebre cinegrafistas como Dib Lutfi.

O longa não deixa também de prestar seus tributos a outras figuras que Sarno parece ter em alta estima. Não apenas Glauber ou Dib Lutfi, que sequer são citados filmicamente de forma tão evidente e não são necessariamente inspirações imediatas para o cineasta, mas também à literatura de Euclides da Cunha, ao diretor Edgard Navarro (que faz uma participação especial interpretando o messiânico Antônio Conselheiro) e sobretudo João Guimarães Rosa, sendo possível traçar semelhanças entre o filme e a catedral literária “Grande Sertão: Veredas”. Se na obra de Rosa a odisseia do jagunço Riobaldo é construída através de arrojada experimentação literária, em “Sertânia” as viagens (geográficas e mentais) do moribundo Antão são colocadas em tela por uma articulação de ideias que também foge do óbvio, do tradicional. As duas obras, ademais, compartilham alguns momentos narrativos: as sequências em que Antão ganha suas alcunhas “de guerra”, bem como o peso dado a elas, podem ser vista como um aceno ao Riobaldo Urutu-Branco, anteriormente Tatarana, de “Grande Sertão: Veredas”. Há também uma aura de brutalidade que cria outro laço entre as obras de Rosa e Sarno.

Brutalidade talvez seja uma palavra-chave para entender o longa. Não apenas pelo contexto maior no qual o realizador encontra a ambientação para erguer sua mise-en-scène, mas por uma série de acontecimentos que ele captura, desde sequências que são tratadas pelo filme como sendo de maior importância até momentos aparentemente triviais. A tudo está atrelada a brutalidade, que mesmo em uma produção que se sobressai estilisticamente, ainda consegue se desenrolar de forma surpreendentemente sóbria.

A abordagem de Sarno ao filmar degolações, decapitações e outros tipos de ataque não vai ao gore, mas não mantém o distanciamento preocupado de produções que tentam retratar a violência enxugando-a de seu aspecto gráfico. Aproxima-se mais de uma crueza (que é impactante justamente por sê-la) do que em aspirações de se relacionar com o terror ou outras manifestações do que é comumente chamado de “cinema de gênero”. Mesmo certas soluções comuns, como o corte da montagem coincidindo com o corte na carne, são empregadas sem que o momento perca força.

Se a relação entre o ser humano e a morte é uma das principais preocupações de “Sertânia”, esta paira o sobre o filme como uma aura de enxofre desde seu início. Está presente não somente nos momentos e violência mais diretos, como no microcosmo em que os personagens estão inseridos, na maneira como eles se relacionam um com o outro e percepção que possuem acerca dos próprios destinos.

Sendo relembrado majoritariamente como documentarista, Geraldo Sarno não faz feio enquanto ficcionista. É feliz em instrumentalizar a história do jagunço moribundo para conseguir os planos que almeja. Elipses temporais se cruzam com momentos de consciência e semiconsciência que abrem terreno para bons momentos visuais, materializados sem que a obra perca seu viés social. O realizador baiano utiliza o sertão do estado do qual é natural como uma maquete, onde elabora conflitos seculares da história do Brasil e preocupações inerentes da condição humana. As brigas por poder, a miséria, o messianismo e o limbo entre vida e morte estão entre a salada de conceitos que se concretiza em “Sertânia” de forma simultaneamente elegante e dura.

Chega a ser um exercício de imaginação válido a comparação entre o Sarno documentarista e o Sarno ficcionista. Ambos se interessam pelo mesmo tipo de espaço, pelas mesmas temáticas e pelo mesmo povo. No entanto, se os curtas documentais do cineasta enquadram os temas que lhe são objeto por meio do que veio a se tornar a linguagem tradicional e reconhecível dos documentários cinemanovistas (“Arraial do Cabo” e “Aruanda” talvez sejam dois exemplos dignos de nota, no que cabem as semelhanças estéticas ao cinema de Sarno), um longa de ficção como “Sertânia” triunfa justamente pela câmera e pela montagem mais autônomas, bem como pelas diferentes camadas de realidade e temporalidade que compõem um filme caleidoscópico.

O longa pode ser também comparado, por alguns motivos, ao “Guerra do Paraguay” (2016) de Luiz Rosemberg. Ambos, em um primeiro momento, são filmes históricos que tem como pano de fundo ambientes desolados por uma série de conflitos, capturados através de uma fotografia digital filtrada em preto e branco. Além disso, são obras tardias de cineastas que possuem um longo histórico no cinema brasileiro. Os filmes se diferenciam por abordagem; Rosemberg parte para o alegórico representado por uma dinâmica quasiteatral centrada em poucas personagens, Sarno vai além em escopo e é mais radical em suas imagens. Tal comparação não deve ser feita para elevar ou rebaixar qualitativamente um em relação ao outro, mas sim para alimentar reflexões.

Assim como era o caso com Rosemberg, Geraldo Sarno não tem vergonha da fotografia digital, como parece ser o caso com cineastas que optam trabalhar com o P&B no século XXI. O uso do P&B hoje parece ser uma espécie de complemento fetichista à insistência no 35 mm (como no “Roma” de Alfonso Cuarón) ou uma espécie de substituto fácil para o mesmo. Também é comumente utilizado em filmes de época, numa tentativa de simulação estética do cinema de um determinado período. “Sertânia” dispensa essas saídas fáceis. Não esconde o digital e usa um P&B bem trabalhado em jogos de contraste, luz e sombra como uma forma de enriquecer suas imagens, enxugando-as de suas cores para exaltar o aspecto seco e brutal do que está sendo retratado. “Enriquecer” é o termo fundamental aqui; se em usos recentes do P&B na história do cinema pode-se enxergar o filtro como empobrecedor da imagem, mal utilizado, de forma chapada e mal trabalhada, há em “Sertânia” um cuidado para que o filme não faça uso desse artifício de maneira leviana.

Há tanto para se pensar e discutir no mais recente longa de Geraldo Sarno que o espectador pode acabar até mesmo esquecendo de atribuir a ele rótulos mais primários, como o “nordestern”, tradição do cinema brasileiro que tem como expoentes principais (e antagônicos) produções como “O Cangaceiro” e “Deus e o Diabo na Terra do Sol”. Não deixa de ser um dos melhores nordesterns produzidos em anos, principalmente quando posto ao lado de alguns esforços recentes no gênero, como a tentativa da Netflix de se enveredar por ele, “O Matador”. Tudo o que esta não entende sobre cinema, sobre cinema brasileiro, sobre nordestern e sobre o Brasil, o filme de Sarno entende e de sobra. Não é sobre tentar adequar uma ambientação brasileira a uma narrativa e uma estética importadas do cinema estadunidense (e se pode-se argumentar que Lima Barreto fazia isso em “O Cangaceiro”, ele pelo menos o fazia com estilo, absorvendo o que há de melhor em John Ford), mas sim sobre simultaneamente retratar o real âmago da realidade brasileira enquanto se arquiteta algo verdadeiramente interessado e interessante em imagem e em linguagem.


Para ir até a pagina principal de nossa cobertura para o Ecrã 2020, clique aqui.
Para assistir a Sertânia, clique aqui.
Topo ▲