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Subterrânea

Subterrânea

O Rio de Janeiro enquanto ambientação para um neo-noir

Igor Nolasco - 29 de janeiro de 2021

Escrever sobre “Subterrânea” não é uma tarefa simples. Trata-se de um filme difícil de se definir; assisti-lo da maneira mais propícia é experienciá-lo sem se preocupar com princípios de clareza narrativa ou explicações que simplifiquem o que está em tela. O longa, que pode ser assistido em pré-estreia na Mostra Tiradentes desse ano, possui em sua página no site do evento uma sinopse que foge do habitual, apostando no enigmático:

“Sub
Sub solo
Sub terra
Sub mundo
Sub desenvolvido
Sub América
Sub verter
Sub liminar
Sub alterno
Sub mergir pelas matas ou nas ondas do mar
Sub way
(depois de H.O.)”

O gesto de apresentação a produção de maneira críptica, que pode confundir ou mesmo afastar espectadores mais tradicionalistas, certamente instiga a curiosidade dos mais interessados por experimentalismo. E é nisso o que “Subterrânea” aposta. O experimentalismo dita o tom da narrativa (da qual o longa não abre mão, indo na contramão do que fazem muitos filmes experimentais do atual cinema brasileiro), da linguagem, dos elementos concatenados ao longo da hora e vinte de minutagem e mesmo dos referenciais utilizados para construir o alicerce intelectual do filme ­­– que é levantado com inspiração assumida em Hélio Oiticica, Rogério Sganzerla, Júlio Verne e principalmente Lima Barreto.

Com direção, fotografia e operação de câmera de Pedro Urano e protagonizado pelo músico e sociólogo Negro Léo, um espectador familiarizado com esses dois nomes inevitavelmente sentirá de início uma ligação com o trabalho da cineasta Paula Gaitán, que aliás é a grande homenageada da Mostra Tiradentes de 2021. Dois de seus filmes que estão em cartaz no evento, inclusive, possuem pontes com “Subterrânea”: Pedro Urano é o fotógrafo de “Luz nos Trópicos” (2020), Negro Léo o objeto do documentário “É Rocha e Rio, Negro Léo” (2020).

Apesar disso tudo, em momento algum “Subterrânea” se propõe a ser uma extensão do cinema de Gaitán. O trabalho que Urano desenvolve aqui tem voz própria e se envereda por assuntos e interesses muito particulares. Particular também é a maneira como o realizador articula tudo isso através das imagens e da linguagem do filme; ainda que inicialmente calcado num modelo narrativo tradicional, ele incorpora alguns recursos mais arrojados a sua estética (que inclusive se entrecruzam com a história que está sendo apresentada), sobretudo na medida em que vai chegando em seus momentos finais, que é quando vai e volta, literalmente, aos subterrâneos do Rio de Janeiro.

Léo é aqui sobrinho da professora Stein, que a partir da investigação de fragmentos de um meteorito, começa a descobrir uma conspiração ao estilo deep state que vai fundo na história da cidade que é palco, objeto e personagem (talvez a verdadeira personagem principal) de “Subterrânea”: o Rio de Janeiro.

Ao de cara abrir o filme com imagens que mostram o incêndio do Museu Nacional, na Quinta da Boa Vista – tragédia que chocou o país e foi amplamente noticiada em sua ocorrência, em 2018 – Pedro Urano mostra ao que veio. A partir de marcos históricos (para o bem ou para o mal) que definiram o Rio de Janeiro, conecta um evento ao outro na construção das tramas que serão exploradas por Léo e Stein, sempre se utilizando, quando possível, de imagens de arquivo vindas das mais diversas fontes, integradas ao conjunto de maneiras que não se limitam ao que é esperado. E vai além, pois verdadeiramente explora visualmente o Rio de Janeiro enquanto cidade.

Seus personagens (mas principalmente Léo) flanam pelo Rio e o cineasta se utiliza desse pretexto para retratar a cidade sob sua ótica de ficcionista. A conspiração construída sobre diversos acontecimentos na história da cidade acaba servindo como um pretexto para que uma série de ambientes do microcosmo carioca seja objeto da câmera de Urano.

Não se trata, no entanto, de um filme-fetiche que só funciona para cariocas ou espectadores necessariamente familiarizados com o Rio de Janeiro. Os escombros do Museu na Quinta da Boa Vista, o prédio da Universidade Estadual (UERJ), onde trabalham Stein e Léo, as imediações da Praça XV e o trajeto pelo centro do Rio que se desenrola pela janela do VLT certamente causam a esses supracitados espectadores um senso bem-vindo de familiaridade, mas estão ali com um propósito. Tudo isso e muito mais é trabalhado minuciosamente na criação de uma ambientação que não aposta nas saídas fáceis da iconografia de “cidade maravilhosa” que compreendem o Corcovado, o Cristo Redentor e os Arcos da Lapa. O Rio de “Subterrânea”, na verdade, causa uma sensação de desconforto, incômodo. Captado por cores dessaturadas, com ruas sempre vazias e construído sobre as ruínas de incontáveis reformas urbanas, ele está, em verdade, mais próximo do proverbial “vale da estranheza” – que é construído de maneira bem sucedida através dos esforços do realizador, fazendo-o sem alterar praticamente nada na estrutura de cada ambiente.

Na criação de sua conspiração carioca, Pedro Urano resgata e faz praticamente uma homenagem à figura de Lima Barreto; é um de seus escritos sobre a primeira parte do desmonte do Morro do Castelo que serve como o norte inicial de Negro Léo para descobrir os caminhos a serem seguidos. Impossível falar de “Subterrânea” sem falar em Lima Barreto, que além de ser aqui exaltado como o “maior escritor brasileiro de todos os tempos”, é uma figura sempre presente a partir do momento em que é mencionado pela primeira vez, acompanhando as ações como um espectro (e chegando a ser retratado em um pesadelo/alucinação que, de modo experimental, soa como uma atualização perturbadora da célebre sequência de pesadelo em “Blind Husbands”, de Erich von Stroheim).

Por ser um filme sobre a descoberta de uma profunda conspiração deep state, o longa de Pedro Urano já está sendo comparado, aliás, com o “Under The Silver Lake” (2018) de David Robert Mitchell. A raiz de ambos, claro, está em um mesmo subgênero; a saber, o film noir da velha Hollywood. Em “Subterrânea”, isso é explicitado pela maneira como o filme faz o uso da trilha sonora (cuja composição conta com Negro Léo). Os arranjos orquestrados ditam o tom das sequências de maior tensão de uma forma que pode chegar a ser desconfortável ou autoevidente para os que não comprarem a proposta de um neo-noir carioca, e no entanto, para esses propósitos, cabe perfeitamente bem. Reza a lenda de que Orson Welles odiou a trilha sonora de “A Dama de Xangai”. No entanto, o tipo de música utilizado nesse e em tantos outros noirs tornou-se quase que sinônimo do subgênero, e incrementa com louvor filmes feitos na atualidade que buscam emular o espírito de tais produções e levá-lo além.

É basicamente isso o que “Subterrânea” faz. Redescobre o Rio de Janeiro como um cenário propício a um neo-noir (e comprova sua efetividade quando consegue criar essa atmosfera mesmo que filmando majoritariamente durante o dia) não só por sua geografia ou pela vida própria da cidade, mas também por seu passado, todas as histórias que foram sucessivamente empurradas para debaixo do tapete da História. Entra de cabeça nas narrativas de conspirações, entendendo o absurdo das mesmas e se preocupando mais em construir um emaranhado efetivo e funcional que dê em um desfecho apoteótico do que em criar algo de clareza cristalina, linear e habitual (seguindo, aliás, os passos do que o supracitado Welles fez em seu “A Dama de Xangai”). Dentre os longa-metragens de ficção presentes nessa safra de festivais de 2020 e agora do começo de 2021, é um dos títulos mais impressionantes. Só o tempo dirá, mas é possível que venha a ser, também, um dos mais memoráveis.


Esse texto faz parte de nossa cobertura para a 24ª Mostra de Tiradentes. Para ir até a página principal da cobertura, clique aqui
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