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Tempo

Tempo

A angústia de estar à mercê da natureza e, mesmo com a derrota certa, tentar enfrentá-la

Matheus Fiore - 3 de agosto de 2021
O texto a seguir contém spoilers de Tempo.

A obra Saturno Devorando Seu Filho, de Francisco de Goya, é minha favorita para falar sobre a relação humana com o tempo. Saturno (ou Cronos, como os gregos chamavam), é o deus do tempo, o que torna evidente que o quadro fala sobre como é impossível lutar contra o próprio tempo; é a única força da natureza que nunca podemos superar. O destino de todos é a morte, e nossa única opção é aproveitar o curto espaço de tempos que temos entre o nascimento e o fim.

M. Night Shyamalan não referencia Goya diretamente em Tempo, mas é clara a similaridade de ideias entre Goya e o diretor indiano. Em seu novo filme, o cineasta mostra um grupo de pessoas isoladas em uma praia e distantes de tudo que o mundo moderno oferece. Várias famílias começam a notar algo estranho acontecendo: todos ali presentes estão envelhecendo muito rápido. O tempo passa de uma forma diferente e mágica, e cada personagem tenta lutar contra um fim inexorável enquanto busca formas de sair do lugar, que parece inescapável. O novo lançamento de M. Night Shyamalan tem, como todos os outros, semelhanças com sua obra como um todo, mas isso não o impede de ser único ao falar sobre como lidamos com o tempo e como parece impossível simplesmente parar, perceber o mundo e respirar.

Em certo ponto do filme, nos é esclarecido que cada personagem foi selecionado ali por uma condição de saúde, mas com Shyamalan, nunca é tão simples. A questão que o roteiro usa para justificar a presença dos personagens na praia pode ser científica, mas o motor artístico do filme é outro: todos ali lidam de forma errada com o tempo. Peguemos, por exemplo, o casal Guy (Gael García Bernal) e Prisca (Vicky Krieps). O primeiro só se preocupa com o futuro (trabalha em seguradora, calculando o risco de vida de seus clientes); a segunda, com o passado (museóloga, vive de mexer em velharia).

Antes de irem à praia, Guy e Prisca têm algumas cenas de briga, que mostram como os filhos Trent e Maddox ficam sempre do lado de fora, excluídos, esperando a briga passar para poderem brincar. Guy e Prisca parecem tão preocupados com passado e futuro (algo que os próprios verbalizam, já que os roteiros de Shyamalan não têm medo nenhum de serem expositivos) que não percebem o presente – e me perdoem por soar tão cafona ao me referir assim à situação, mas os mais familiarizados com o cinema do diretor sabem que a cafonice, geralmente, é inevitável.

Não surpreende que a dupla principal só consiga encontrar o caminho de volta para casa após parar de se preocupar com o tempo e dedicar um momento para fazer castelos de areia, independente do quanto isso custar. São os únicos personagens que de fato vivem o momento e não uma ficção relacionada ao futuro. Não possuem medo ou arrependimentos porque tudo que querem é simplesmente viver, e não esperar. As crianças são um belo contraste, por exemplo, com a personagem que está o tempo inteiro em busca de manter seus índices de cálcio equilibrados e a alimentação balanceada (e que tem o mais terrível fim).

Mais do que vítimas de um experimento científico, as pessoas presas na praia são vítimas de seus próprios anseios ao não conseguirem tocar suas vidas como desejavam. Tempo é, não por um acaso, um filme que sempre ressalta a impotência humana diante do próprio tempo, a incapacidade de controlar a natureza quando esta está agindo a todo momento (algo que Shyamalan também versou bastante no excelente e injustiçado Fim dos Tempos). A grande sacada do diretor é colocar seus personagens em um lugar onde são obrigados a sentir cada acontecimento e cada fase da vida intensamente, e não experimentar tudo no piloto automático. 

Como o grande cineasta que é, Shyamalan ainda faz com que todas essas ideias reflitam tanto nos acontecimentos da história como na forma de filmar. Boa parte de Tempo mostra os personagens correndo de um lado para o outro da praia tentando resolver problemas que estão além do controle de qualquer ser humano. Se a morte é inevitável, só resta sentir as porradas e viver, algo que a montagem ressalta ao nunca dar muito tempo para o espectador sentir os golpes, já que os acontecimentos e as tragédias se sequenciam em um ritmo atordoante. Quando não encaixados de maneira ágil, os eventos são sempre conduzidos por movimento, por uma câmera que, como um ponteiro, não para e não retrocede, apenas segue seu ritmo e empurra a trama para frente, criando apreensão, angústia pela inevitabilidade da natureza.

O próprio diretor se manifesta em cena para brincar com suas ideias. Shyamalan sempre faz uma ponta em seus filmes e geralmente como alguém importante na trama, mas talvez nunca como acontece em Tempo. Aqui, o cineasta observa de longe todos na praia, como se observasse o espectador assistindo ao filme (suas lentes repetidas vezes estão viradas para a própria câmera). Se só é possível escapar da praia ao aceitar a inexorabilidade do tempo e viver o momento, para Shyamalan, parece só ser possível sentir e apreciar seu filme se aceitarmos que vamos assistir ao que ele quer mostrar, e não o que esperamos. Tempo desafia que você aprecie seus cento e poucos minutos sem se preocupar com o que vem depois; exige que você tenha uma experiência real com o cinema e não simplesmente o consuma como se fosse um Fandangos.

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