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Um Elefante Sentado Quieto

Um Elefante Sentado Quieto

Longa póstumo de Hu Bo explora as dores da alienação e o misticismo do tédio.

João Pedro Faro - 21 de março de 2019

Um clima soturno de fim de década vem marcando o cinema recente, especialmente os cineastas chineses. Não é incomum que um país com um processo de desenvolvimento tão brutal ao longo desse início de século, ecoe em sua filmografia toda a violência desse progresso. Em 2018, tivemos dois exemplos marcantes dessa tendência: o mais diretamente político e apoteótico Amor Até as Cinzas, de Jia Zhangke (com estreia brasileira marcada para abril) e o épico intimista Um Elefante Sentado Quieto, de Hu Bo, primeiro e último longa metragem do diretor, que cometeu suicídio pouco antes do filme debutar. A tragédia envolta em Elefante já seria o bastante para tornar suas 4 horas de duração uma experiência intrinsicamente destrutiva, infectada por acontecimentos reais que invadem a projeção, mas o que realmente prevalece na obra póstuma de Hu Bo é uma constante busca nos destroços do que foi deixado para trás. Lidando com diversas destruições, o longa surge com certas esperanças que desafiam diretamente nossas percepções da realidade e com o que esperamos dela dentro do cinema.

Seguindo um dia na vida de quatros personagens marginalizados em um microcosmo de desgraças, que eventualmente se juntarão por um objetivo em comum, Elefante pode ser acusado de certos costumes banais do cinema de arte asiático. Mais obviamente, pelo apreço por um “naturalismo” cansado e pouco distintivo. Uma percepção entendível, porém equivocada e renegada pelo próprio filme: praticamente nada se assume como natural no longa.

Mesmo que composto por segmentos de plano-sequência, travellings na mão que perseguem os personagens e um apreço pelo uso pontual de não-atores, Hu Bo nunca nega a presença da câmera e marca o processo fílmico na composição da imagem constantemente. Longos diálogos entre um primeiro plano focado e personagens desfocados no fundo da imagem e desvios inesperados da ação de cada cena afim uma ambientação mais extrema são pilares do filme, são eles que localizam dramaticamente toda a obra. Hu Bo entende que reduzir-se, no cinema, não é negar a encenação ou a estilização, mas sim usá-las a favor de suas intenções mais essenciais. Nenhum recurso mais complexo surge como preciosismo, eles existem como parte dessa intenção central do sentimento de inferiorização, de isolamento. Compartilhar a sensação de não pertencimento causada por um ambiente formulado por bases hostis de educação, trabalho e rotina dentro de um tempo que parece dilatado.

Dessa redução que parte a busca: os protagonistas de Elefante sentem-se igualmente mínimos, compartilham a agonia da marginalização e nela acabam em um tédio generalizado onde nada parece acontecer para que toda as suas dores acabem. Mas é nesse estágio de recolhimento que acabam por aproximar-se da essência, de um desejo por esperança que só é alcançado nesse mínimo (no filme, colocado como o tal elefante de circo que tem a habilidade de sentar como um humano, algo que todos os personagens querem ver). No cenário de suas vidas, demolido moralmente e fisicamente pela desesperança, acabam por refugiar-se no que resta e procurar um sentido para reerguer esse espaço a partir de ruínas.

E aí cabe o trabalho de Hu Bo entorno do tempo. Por mais que celebre suas passagens mais explosivas, momentos pontuais e breves que concretizam os desejos buscados, ainda é uma obra que mantém o tema vigente do tédio como base monumental da juventude. Aqui, o ócio da rotina ainda é permeado por certa fantasia, uma atmosfera fúnebre muito mais próxima do fantasmagórico do que do cadavérico. Essa constância contemporânea em torno do tédio tem como provável culpado Gus Van Sant, isso em seu próprio Elefante (2003) mas principalmente em Paranoid Park (2007), que dialoga com o Elefante do Hu Bo em tudo de terrível que o tédio oferece e em toda a espacialização dos refúgios emocionais juvenis. Além disso, ambos os filmes parecem sempre registrar a confusão entre todo um bem estar social causado por um limbo entre o acolhimento do espaço privado em relação ao espaço público (os personagens que parecem muito mais à vontade na rua do que em casa). Seja na pré-crise econômica estadunidense, seja no capitalismo acelerado chinês, o jovem nunca parece ter nada para fazer de muito relevante além de alienar-se do convívio mundano.

Yuchang Peng, em “Um Elefante Sentado Quieto”

Gabe Nevins, em “Paranoid Park”

Se o refúgio é na destruição e a esperança é no isolamento, é meio impossível que não seja um filme doloroso. A trilha sonora de Elefante Sentado Quieto parece saída dos b-sides de algum disco do Mogwai, pesando em sintetizadores tão melancólicos quanto suas imagens. É inegável toda a sua monotonia e sua facilidade em transmitir tanta sofrência. Mas aí também está outra percepção equivocada, causada principalmente por uma realidade que insiste em querer estar na sala de cinema: é fácil pensar que Elefante apela aos mais simplórios niilismos e a dicotomias deterministas, e por grande parte de sua duração realmente apresenta essas características. Mas o que vai sendo sutilmente intuído nesses aspectos são brechas para dias melhores, para firmações mais proveitosas do mundo. Tanto que sempre que a morte acontece no filme ela está distante do primeiro plano, não é filmada diretamente, não é engrandecida como os momentos de libertação de cada personagem são (o grito no trem, a surra que a garota dá em quem te causava dor, o passeio do avô com a sua neta). Tudo culmina para um momento final que espanta qualquer fatalidade, que celebra um sentimento de sobrevivência genuíno mesmo que seja entorno de aspectos muito mais místicos do que terrenos. Não dá pra chamar de fatalista um filme que se encerra com um grunhido.

 

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