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Um Tiro na Noite (1981)

Um Tiro na Noite (1981)

Modernidade paranoica tardia

Wallace Andrioli - 10 de fevereiro de 2021

Em análise das origens da Nova Hollywood, o crítico Luiz Carlos Oliveira Jr. chama atenção para o lugar central que o registro fílmico do assassinato de John F. Kennedy, feito pelo comerciante de Dallas Abraham Zapruder, ocupa no imaginário cinematográfico americano das décadas de 1960 e 1970. O impacto da cena da cabeça do presidente sendo estourada por um tiro e a paranoia derivada da busca pelo entendimento do ocorrido, da descoberta do que estava fora de campo (o atirador), alimentaram um cinema amargo, desiludido e desconfiado das instituições governantes dos Estados Unidos e do próprio estatuto de veracidade das imagens, que deveriam ser sempre esmiuçadas para revelar algo mais do que a aparência.

Um Tiro na Noite (1981), de Brian De Palma, aliás lançado no mesmo ano em que Ronald Reagan sofreu um atentado semelhante que quase o matou, é uma espécie de filho tardio desse cinema moderno paranoico americano. A Hollywood dos anos 1970 já havia sido inundada por filmes do tipo, tendência ainda mais fortalecida pelo escândalo de Watergate, em 1972: A Conversação (1974), de Francis Ford Coppola, o díptico A Trama (1974) e Todos os Homens do Presidente (1976), de Alan J. Pakula, Três Dias do Condor (1975), de Sydney Pollack, entre outros.“Todos os bons filmes já foram feitos”, diz Peter Bogdanovich em Na Mira da Morte (1968), aliás, outro filme que aborda esse imaginário pós-Zapruder, numa trama em que um sniper atira a esmo contra pessoas comuns, inclusive de trás de uma tela de cinema.

De Palma é um cineasta acostumado a chegar atrasado nas festas. A própria relação derivativa que boa parte de seu cinema estabeleceu com o de Alfred Hitchcock é um exemplo disso. Um Tiro na Noite carrega as vantagens e as desvantagens desse estar sempre um passo atrás. Há uma certa falta de novidade no enredo conspirativo, que mobiliza uma série de plots até muito bem articulados pelo roteiro do próprio De Palma, mas sem causar real impacto com suas eventuais revelações (tanto aquelas que respondem exclusivamente a demandas da diegese quanto as que comentam o funcionamento do mundo político). Mas, no campo das vantagens, o diretor se esbalda.

Como bom maneirista, ele recorre ao cinema para mediar essa relação paranoica com o mundo. O protagonista não é alguém alheio ao fazer fílmico como Zapruder ou mesmo o especialista em escutas clandestinas de A Conversação: Jack Terry (John Travolta) é um técnico de som a serviço de produções B e é no exercício desse trabalho que ocorre a captação de um crime político e sua inserção numa conspiração. De Palma usa essa presença diegética do meio cinematográfico para desnudar os mecanismos de construção dos filmes. Acaba importando menos o desvendamento do crime do que, por exemplo, a explicitação da articulação entre montagem dos planos e captação sonora como meio de acesso a dimensões escondidas do real.

Na verdade, as relações entre realidade e ficção em Um Tiro na Noite são de mão dupla. Se a técnica cinematográfica possibilita o desvelamento de um acontecimento a princípio desconhecido (o assassinato encoberto por um aparente acidente), o real serve ao cinema no epílogo: a busca inicial pelo grito perfeito para uma cena de horror, frustrada ao longo da narrativa pela artificialidade da encenação com atrizes ruins, é enfim concluída com a captação involuntária (e inclusão proposital) do clamor desesperado de uma mulher à beira da morte. Igualdade e fraternidade entre o real e a ficção, como defende Godard em História(s) do Cinema (1988-1998).

Mas talvez esses sejam termos excessivamente positivos para definir como De Palma articula essa relação. No plano que encerra Um Tiro na Noite, Jack vê o resultado brilhante de seu trabalho com um misto de orgulho e profunda tristeza. “É um bom grito”, ele repete em resposta à empolgação de seu chefe, mas logo depois tapa os ouvidos, angustiado. A ironia que existe na absorção da realidade pelos filmes não é tratada pelo diretor como uma mera brincadeira divertida, mas com amargura.

Um Tiro na Noite é, portanto, uma espécie de último respiro do cinema moderno paranoico americano (Oliveira Jr. define o maneirismo como parte da modernidade cinematográfica tardia) diante do avanço voraz de um pós-modernismo por vezes acrítico, que engole todos os elementos do real e do artístico e os transforma em peças indiferenciáveis de um mesmo jogo. De Palma reconhece essa condição, lida com sua inexorabilidade, mas não abre mão do criticismo modernista manifesto na melancolia devastadora do final do seu filme.

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