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Visages, Villages

Visages, Villages

Uma declaração de amor à fotografia

Gustavo Pereira - 28 de outubro de 2017

Cabe à Fotografia uma das missões mais inglórias dentro das Artes. O tempo, recurso tão intangível quanto escasso, sufoca a todos com sua inexorabilidade. “O tempo não para”, dizia o poeta-cantor cuja menção é desnecessária. Mas lá está o fotógrafo, tentando congelar o tempo dentro de uma moldura. Uma luta que já nasce perdida. Mas que nunca deixará de ser enfrentada, como ilustra Visages, villages, produção francesa de Agnès Varda e JR. Alternando saudosismo e vanguarda, seus 90 minutos mostram o que realmente faz a Fotografia valer a pena. E o registro físico, talvez surpreendendo o espectador, é um efeito colateral menor dentro do processo de composição.

A título de contextualização, JR já foi chamado de “Cartier-Bresson do século XXI”. Suas intervenções devolvem o espaço público aos populares, com a colagem de fotos imensas em preto-e-branco nos muros e paredes de cidades como Paris. O trabalho de JR para a França tem o tom questionador de artistas marginais que acabaram por se tornar mainstream. Algo similar à forma como Banksy é visto pelos ingleses. Agnès Varda, por sua vez, é uma das precursoras da Nouvelle Vague. Nascida na Bélgica, sua contribuição para o Cinema Francês começa a ser notável já na década de 1950. Explorando de forma inusual não-atores e rodando em locações em vez de estúdios, sua obra é marcada pelo realismo, crítica social e questões feministas. O estilo adotado por Varda é praticamente experimental.

A partir de uma aproximação artística, a amizade entre JR e Varda é desenvolvida em tela. Visages, villages, afinal de contas, significa “rostos e lugares” em Francês. Andando numa mini-truck adaptada para cabine fotográfica móvel, os dois rodam por vilarejos franceses e registram habitantes locais. Enquanto entregam a seus “modelos” o protagonismo que lhes é de direito, JR e Varda dão a estas pessoas a oportunidade para expor a própria visão sobre o microcosmo em que vivem.

Este é um dos principais pontos positivos de Visages, villages. O documentário brinda a audiência com histórias tão díspares quanto a última moradora de uma antiga vila de carvoeiros e uma criadora de cabras que se nega a queimar os chifres dos animais. Seja nestas histórias ou em outras, como a do agricultor que cultiva 800 hectares de terra sozinho e a das esposas de três estivadores que transitam num universo majoritariamente masculino, há uma constante subliminar: um olhar quase reverencial para o passado. Não exatamente algo que remeta a saudade. Está mais para uma consciência coletiva de que é impossível andar para frente sem olhar para trás. Neste sentido, a Fotografia cai como uma luva, pois configura um registro estático de um momento que não se deseja perder.

Visages, villages JR Agnès Varda

Ao estampar os muros de uma fábrica com seus funcionários, Varda e JR devolvem a eles o protagonismo antes dado à construção

O que torna Visages, villages num filme tão didático é a clareza com que relaciona o produto final – os murais imensos de JR – com a história por trás dele. A plena compreensão da obra só é possível porque o sujeito da passiva, o fotografado, se faz presente. É ele quem dota o significante de significado, com os artistas trabalhando mais como tradutores do que como criadores. E, nesse aspecto, Agnès Varda justifica a existência do documentário, pois faz uso de linguagem cinematográfica para salientar esta dinâmica. O uso de silêncios permite que as emoções dos entrevistados floresçam espontaneamente na tela. Um contra-plongée torna o solitário tocador de sinos em uma figura tão grande quanto seus objetos de trabalho. Em outro momento, numa inclinação de câmera próxima ao plano holandês, faz um “balé” com empilhadeiras.

Nos detalhes, Visages, villages é uma obra sobre sensibilidade, amor e efemeridade. A justaposição de Varda e JR, uma cineasta beirando os 90 anos com problemas de visão e um fotógrafo que nunca tira os óculos escuros. Imagens, que conotam uma ideia de interpretação unívoca, são tratadas como resultado direto da interpretação de quem as vê. O maior desafio, dos murais e do documentário sobre eles, é preservar esta leitura aberta. Assim, permite que o espectador reflita sobre o que está vendo.

Visages, villages JR Agnès Varda

A homenagem a Guy Bourdin dura uma maré alta: não há registro que vença o tempo

Não é um filme perfeito. O processo de criação dos painéis de JR, exibido à exaustão, nunca é explicado. Sua equipe fica subutilizada, sem muito espaço para falar da parte prática da confecção e aplicação das obras. Uma mulher dá a entender que a exposição de sua foto em uma escala muito maior do que ela esperava a incomoda pelo assédio gerado, mas a questão é totalmente escanteada. Os próprios diálogos entre JR e Varda são ensaiados, contrastando com a completa espontaneidade dos anônimos fotografados. Como resultado desta escolha, os artistas se encastelam. Precisam ser interpretados em outro nível, pois ficam escondidos atrás das personas que construíram para si. Num filme pautado pelo desvelo, se apresentam envoltos numa cortina de fumaça.

Mas é inegável que, do violão sendo afinado em off durante os créditos iniciais até a revelação que JR faz para Agnès no fim, Visages, villages passa uma mensagem tão simples quanto desafiadora. “Uma imagem fala mais do que mil palavras”, mas tente dizer isso sem palavras. Espaços não são nada sem as pessoas que nele vivem ou viveram. Uma obra de arte é estéril sem interlocução. E a busca pela verdade – um conceito que erroneamente é tratado como universal, quando não poderia ser mais subjetivo – vale mais do que o seu registro. Pois este, ao fim e ao cabo, é tão efêmero quanto o próprio tempo.

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