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Voltei!

Voltei!

Deixando a câmera sentir

Egberto Nunes - 30 de janeiro de 2021

É curiosa essa sensação de borboletas no estômago que estou tendo após a assistida de Voltei. Uma certa ternura que eu não sabia descrever além de qualificá-la como uma sensação boa. O longa anterior de Glenda Nicácio e Ary Rosa, Até o Fim (2020), carregou a mesma pancada que passei. Também não é surpreendente, ambos se apegam a uma mesma sintonia: a do livre diálogo e da experimentação do toque. Mais curioso ainda é esse começo de escrita feita após alguns minutos do fim do filme. Será que devo esperar? Desenrolar? Ou deve-se aproveitar o que foi entregue e deixar acontecer como vier? Deixemos, por que também é aí que vem. Antes de tudo, são algumas colocações que me implicam, em meio à uma cobertura de festival. 

E é nesse meio caminho de sentimentos e reações que entramos no palco registrado pela câmera do quarto longa metragem do casal de diretores do recôncavo baiano. Seguimos, Alayr, acendendo uma vela para iluminar a casa sem energia, se sentando na mesa e arrumando seu radinho. Antes, ela colocava palavras soltas numa lousa, desconexas umas da outra, cada qual com seu sentido. Bam! A porta abre e começa o falatório desprendido de Sabrina e seus casos, sua irmã. Ela vem de máscara, mas não estamos na atualidade, o ano é 2030.  Alayr é uma professora de história e reage atenta como uma aluna, aos causos históricos que sua irmã Sabrina conta. Estranhamentos, aproximações de imagens. Irmãs pretas se sentam para conversar e acompanhar o julgamento do disparate (ou como elas chamam o presidente da época).

Muda-se o assunto, entra outro, vem um choro, a risada, o descontentamento , as informações chegam e fogem. A fala arrojada atravessa e desequilibra o ar. O sotaque puxado, a fala que caça na memória e a imitação de outro que tira o riso. Uma conversa que opera pelo regime do diálogo e da nossa escuta. Do diálogo que está sendo visto, ouvido e atravessado, e do diálogo que espera e prolonga sem fim. Faz pelo arco da distância de tempos, campos de trabalho e de sentimentos. Uma conversa que nos faz sentar e ouvir o que surge da reação dialógica familiar e se liga pela direção plena e calma. 

Ainda que sejam figuras com linhas em comum, suas personagens, em alguns momentos, exercem um poderio da tela que desprende do texto e agarra a imagem. Trazendo a força que estava concentrada na fala, para o puxadinho gesticulado ou o franzir da testa encarando a tela. O trabalho do filme se dá muito por esse meio onde a própria câmera encara nosso olhar e age como escuta. E nosso olhar também é meio fugidio, logo, a câmera será. Nisso, entram as experimentações e remexidas que partem exatamente do toque de afeto ou do fora do comum daquele quadro. A câmera foge e imagina sozinha como se dará essa tensão, das mais diversas formas. Mas é um experimentalismo pé no chão e fora do quadro – como na entrada fantasmagórica de Fátima, irmã desaparecida. Digo isso porque a ausência de trilha e o estado em que elas se encontram – sem energia, com apoio de algo relativamente arcaico para a era em que vivem – permite concentrar o espectador na tensão montada pelo cenário, que funciona num meio termo entre o particular delas e o livre exercício da câmera.

Nos concentramos no naturalismo da encenação, com as falas, os gritos, as imitações e as emoções. Há o natural das relações familiares e o espontâneo do próprio fazer cinema, que lhe permite jogar para a tela o suposto errático gaguejo do texto, a frontalidade da conversa com a câmera, os quadros lado a lado em menos um segundo (também visto em Até o fim), o efeito de fantasma e logo em seguida o de encarar a chegada. É nesse jogo que se abre espaço para os erros e para a experimentação do que vem de fora. E novamente voltamos para a conversa.

Nesse sentido, Glenda e Ary afastam o espectador e jogam ele de volta. Situam todo um quadro de afetos, paixões, raivas e rancores, tiram o mesmo para inserir uma música, que também está ligada nos afetos das personagens. E voltam para a conversa. Mas é um desencaixe que resulta na espera, uma espera do próprio cinema em deixar os corpos falarem e se sentirem. E deixar também a gente sentir e imaginar. 

Isso pode ser visto na própria narrativa vivenciada no cômodo da casa que também é feita por saídas e entradas do foco de atenção das mesmas, e tanto enquadramento, montagem, quanto movimento da câmera procura articular nosso olhar sobre as diversas reações das irmãs enquanto os votos do julgamento vão se desenrolando e nesse sentido vai entregando aos poucos, algo a se observar sobre suas personagens. Um simples riso ou descrédito esconde uma história de vida, e que a gente vai conhecendo durante o processo da conversa. A câmera-olho que citei no texto não é literal, mas toma o processo de fechamento lento do órgão representando o close na reação de uma personagem enquanto essa escuta o resultado do julgamento e nós apenas observamos, sem nenhum som, apenas o gesto. É o ápice dos anseios e dores sob a tela, reagindo às informações, close que isola, que pressiona e que cria angústia. 

Esse encaixe e desencaixe é também uma recusa de filmar a vida como ela, o que, claro, o cinema nunca alcança. Mas ainda que eu possa ter visto dessa forma, não pude deixar de me agarrar, o tempo todo, a uma sensação de estar assistindo a uma conversa entre minha mãe e suas irmãs. Ou suas amigas. Figuras que eu já conheço e que em suas conversas usam e abusam do grito, das risadas e tendem a não nomear as autoridades do país, tal como as irmãs de Voltei! E talvez há algo mais do que somente o que a imagem demonstra, talvez seja a energia criada pelo momento controlado e da atenção na escuta. Lembranças que a imagem desperta e o corpo não controla. Saudade.

Isso tudo vem em forma da própria encenação, que tem a escolha de nos situar como participantes daquela mesa, que só observam. Como eu disse no começo, mencionando a questão do “palco”, uma mera inserção metafórica de estilo, mas que complemento aqui: é como assistir uma peça filmada onde entendemos que são atores, mas que seus textos carregados nos atingem e somos levados para outra dimensão. O palco aqui também é essa coisa de filmar num só espaço – a casa de uma das irmãs – tanto intencionado pela pandemia quanto pelas condições estabelecidas pela história. Quanto às intervenções, encaro como uma aproximação das memórias e do efeito dos gestos, mas também, uma escolha em deslocar-nos da posição responsável de participante, e voltar para de mero espectador do cinema. 

É uma encenação de riscos, também. Se há vontade de falar sobre o passado das personagens, o que elas esperam do momento, há também uma intensa frontalidade do discurso frente a tela, lembrando do que está fora do quadro, indicando informações coerentes ao espectador atual. Pois é claro, Glenda e Ary não escondem as suas intenções discursivas, falam delas através dos pensamentos ditos pelas personagens, sem a intenção de filmar algo além do que está disponível em tela, seja captando a reação ou a sensação. Essa intersecção de direções cria tanto um sentido hipnótico do longa em nos situarmos na conversa, que é o ponto do contorno do estilo, quanto uma tomada de contrapelo do espectador de sair e voltar rapidamente para a narrativa.

Em síntese: se a fala demonstrou algo duro, cruel, triste, feliz, afetuoso, que a imagem também seja assim e concentre esses mesmos corpos falantes na tela, e traga a sensação para nós. Ou foi o meu caso. E não a dor plastificada, crua, realista, aqui é outra coisa, isso é papo para o que tá fora da tela. É o “morder” o violão que faz com que as memórias do dia passem pela cabeça de uma das personagens. É, enfim, deixar as borboletas agirem pelo estômago e abraçar essa sincronia.


Esse texto faz parte de nossa cobertura para a 24ª Mostra de Tiradentes. Para ir até a página principal da cobertura, clique aqui
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